1.
No mesmo dia em que Marina divulgou seu programa
de governo, conseguiu
ultrapassar Dilma nas projeções das pesquisas de opinião sobre a
sucessão presidencial de outubro. Isso se produz em um cenário
marcado pelo esgotamento ideológico e eleitoral da oposição que
pautou as eleições de 2010 – as tão sonhadas eleições
“plebiscitárias” de Luiz Inácio Lula da Silva: aquela entre
PSDB e PT, entre modelos neoliberal e de bem-estar social de gestão.
Até há poucas semanas, antes do acontecimento-Marina,
Campos gozava de boa saúde e Dilma, de uma folga confortável nas
pesquisas de opinião. Quando o acidente aéreo vitimou
o candidato e o
PSB decide por lançar Marina, tudo se altera. Porém, o
acontecimento-Marina
se explica menos pelo seu conteúdo que pelas condições materiais
em que se produz. O fato de que Marina logrou
subtrair percentis de
intenção de votos tanto ao PT, quanto ao PSDB, como ao teocrático
PSC talvez se explique menos por sua plataforma de governo que
pelo esgotamento das oposições tradicionais. PT e PSDB insistiriam na
cisão. O PT acusa Marina de ser uma “segunda via do PSDB”; este,
acusa-a de ser “verde por fora, mas petista
por dentro”.
2.
Recusando radicalmente a
cisão, Marina serve-se de significantes abertos e fluidos: dentre
todos, o da
“nova política”, signo máximo dessa recusa e golpe que reduz à
unidade – sensível pelo eleitorado – a mal
calculada insistência na
oposição entre PT/PSDB. Há
uma fissura sensível
na equivalência entre arranjo eleitoral e processo político real
– fissura que Marina ocupa
habilmente, e que Eduardo Campos não tinha o mesmo talento para
desenvolver em direções imprevistas. Aparentemente,
duas causas convergem para a vertiginosa ascensão de Marina: (1) a
rejeição medular de parcela
significativa do eleitorado às alternativas tradicionais e
sua oposição (PT/PSDB); (2)
sua habilidade de encarnar essa figura que desterra a oposição sem
sentido em proveito de significantes tão abertos quanto vazios. Eis
aí todo seu infinito enigma, suas desconcertantes contradições,
suas promessas e seus perigos: a promessa de uma relação menos
predatória com a Natureza e, ao mesmo tempo, o perigo de a promessa
ser tragada em um jantar com representantes do Agronegócio. Suas
promessas de direitos civis e o perigo de estes serem destruídos
por cálculos políticos. A tensa relação entre o fator Marina e o
risco fisiologista.
3.
Nesses significantes abertos cabem tanto as promessas quanto os
perigos. Marina não deve mudar nenhuma estrutura fundamental –
portanto, lasciate ogni speranza.
Um sinal disso é que, supostamente para honrar acordos previamente
firmados por Campos e pelo PSB, Marina tem feito contato com setores
do empresariado e do agronegócio aos quais, em outras
circunstâncias, talvez não endereçasse qualquer reverência ou
atenção. Ao contrário de
Aécio e Dilma, Marina tem rejeições setorizadas e
começa a trabalhar para
revertê-las. Nem
toda naïveté
sonhática dos
mundos e redes que gravitam em torno de Marina bastará para encobrir
o fato meramente pragmático de que Marina quer vencer as eleições
e, como efeitos de cálculos políticos, fará concessões. Uma
vez eleita, fará concessões
pela governabilidade. Resta esperar que não sejam nem tão amplas,
nem tão desastrosas em relação a direitos fundamentais como foram
as concessões de Dilma.
4. Seja como for, um pouco de ceticismo é bem-vindo. Marina é
verde por fora e, se eleita, será da cor que convier ao capital, ao
empresariado, ao agronegócio e aos bancos. Esse é o limite de
Marina – limite que Aécio e Dilma não se importam em reconhecer
também para si. Todavia, e para além do fato de que sua
ascensão eleitoral meteórica desarranja todo o tabuleiro do cálculo
eleitoral, o traço mais positivo do acontecimento-Marina talvez
esteja no potencial de colocar em circulação um significante aberto
como o da “nova política”. Algo que, embora não signifique nada
em si mesmo, mobiliza, no limitado interior de um processo eleitoral,
no qual nos ressentimos de não encontrar nada que corresponda aos
processos políticos reais, elementos potentes da recusa das
manifestações e protestos de 2013/2014. Marina encarna, de alguma
maneira, nas urnas, o retorno do que foi recalcado (e reprimido) nas
ruas: a nota fundamental e comum que percorria todo o mais recente
ciclo de lutas populares no Brasil: uma estética política da recusa
e uma multiplicação de pautas e demandas com potencial comum.
5.
Nem Marina é a nova política, nem a nova política é apenas
um significante vazio.
Sequer é preciso inventá-la. A nova política já existe – e
fomos testemunhas oculares de sua gênese. Ela continua a circular
nos subterrâneos, um pouco
como a toupeira
revolucionária de Marx, esse
autor de um ensaio delirante
e real de materialismo sonhático. Trata-se
de algo que não pode
pertencer a ninguém individualmente. A força de Marina, que também constitui o seu limite, é ser a figura de carne e osso capaz
de catalisar o materialismo sonhático de que é feita a nova
política que as multidões das
ruas inventaram em um processo eleitoral formal. Depende de nós
arrancarmos ao real essa força que não pertence a ninguém, mas é
capaz de deformar as estruturas
que demoramos tanto tempo para recusar. A
dose de realidade de que o sonho depende adverte que este é o
momento de arrancar todos os compromissos por ampliações de
direitos que pudermos de Marina. Esse
materialismo sonhático não passa de um outro nome, aberto e
iridescente, para a potência política de um desejo comum que,
legitimamente, não se pode atribuir a ninguém.
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