Era
outubro de 2014. Ao contrário do tenso embate eleitoral que definia
o cenário nacional, no Paraná tudo parecia estar resolvido: o
governador Beto Richa era reeleito no primeiro turno, com quase 56%
dos votos válidos enquanto Dilma (PT) e Aécio (PSDB)
encaminhavam-se à disputa pelo segundo turno das eleições
majoritárias. Enquanto o país elegia o
Congresso Nacional mais conservador desde 1964, o governador
reeleito do Paraná era agraciado não apenas com a reeleição no
primeiro turno por uma maioria relativamente ampla, mas com uma
composição
que lhe era imensamente favorável na Assembleia Legislativa do
Paraná. Dos 54 deputados estaduais eleitos, apenas 06 fariam
oposição ao governo Richa (PSDB). Eleito, em 06 de outubro o
governador foi à televisão afirmar que “as finanças estão em
ordem” e que “o
melhor ainda está por vir”.
Duas
semanas depois dessa declaração promissora, a primeira medida de
austeridade: o governo estadual determina o corte
de 30% nas despesas de todas as áreas do Estado, exceto Saúde e
Segurança Pública. “O melhor” por vir começava
a ser definido em dezembro do mesmo ano, com medidas de ajuste
fiscal incidentes, principalmente, sobre a alíquota do IPVA, ICMS de
combustíveis, custas judiciais etc., bem como uma parca
reestruturação de secretarias do Poder Executivo (em 2013, eram 29;
passaram a ser 26), redução do orçamento da Defensoria Pública do
Estado e implantação de desconto previdenciário para os
aposentados. Tudo foi aprovado em regime de urgência, sob as
críticas da pequena oposição de 06 deputados estaduais. O
pagamento do terço
constitucional de férias dos servidores foi adiado (e até
agora, 19 de fevereiro, permanece inadimplido).
No
início de fevereiro, o governo Richa envia duas mensagens à
Assembleia Estadual, que previam, entre outras medidas:
1)
Medidas de natureza fiscal e parafiscal, como o parcelamento de
débitos tributários (geralmente, débitos oriundos de atividade empresarial)
e a “nota fiscal paranaense” (iniciativa semelhante à do governo
paulista);
2)
Medidas que afetam gratificações por tempo de serviço dos
servidores públicos da ativa, como o fim dos quinquênios
(gratificação de 5% do salário-base incorporada à remuneração
do servidor a cada cinco anos, até o limite de 25%) e a redução
dos anuênios (gratificações devidas aos servidores
a partir do 31º ano de serviço público, de 5% ao ano, até o
limite de 25%, cumuláveis com os quinquênios). Resguardava-se,
porém, o direito adquirido dos servidores da ativa que já percebiam
quinquênios e anuênios;
3)
Medidas que afetam a previdência dos servidores: não apenas
estabelecia-se o teto da previdência como limite às aposentadorias
dos futuros servidores (R$ 4.663,75 em valores atualizados), mas
cogitava-se a criação de um fundo previdenciário paralelo, a ser
gerido por entidade a ser criada (a PREVCOM), de modo que o servidor
optante teria de contribuir com 11% da remuneração para a
ParanáPrevidência e 7,5% para a PREVCOM (18,5% de desconto mensal
sobre a remuneração). Além disso, e insidiosamente, as mensagens
continham uma autorização para dissolver
o Fundo Previdenciário dos atuais servidores (superavitário em
aproximadamente R$ 8 bilhões);
4)
Outras medidas administrativas colaboraram para a instauração de
movimentos de paralisação e de greve: por exemplo, a
dispensa de 30% do pessoal contratado pelo próprio Richa em
regime precário (em regime de urgência via processo seletivo
simplificado) no início do ano letivo de 2015, sem perceber as
devidas verbas indenizatórias – o que deixou as
escolas públicas estaduais sem condições materiais e de pessoal
para retomar as atividades em 2015; a inserção de todas as
Universidades Estaduais no META 4, e sua subordinação ao Conselho
de Gestão Administrativa e Fiscal do Estado (a
exemplo do que ocorreu com a UEL em 2013)
restringiria de forma inconstitucional (art. 207, Constituição da
República de 1988) o exercício do princípio da autonomia
administrativa e financeira das Universidades, sem qualquer diálogo
com a comunidade (a não ser por uma comissão de Reitores cujas
intenções, por melhores que sejam, não podem representar a
pluralidade de interesses da totalidade comunidade acadêmica).
Tais
mensagens foram enviadas por Richa à Assembleia Estadual com pedido
de urgência na tramitação e uma clara determinação aos deputados
integrantes da base do governo tucano para que sua apreciação se
desse em “Regime de Comissão Geral” - regime mais célere, mas
que cobra seu preço à democracia ao subverter a ordinária
discussão das matérias (e o “pacotaço” possui uma diversidade
tecnicamente desaconselhável delas) afeta não a comissões
temáticas específicas (como de lei), mas a uma “Comissão Geral”
que terminaria por legitimá-lo pelo procedimento. Em suma, o serviço
público do Estado, e seus servidores, entravam em uma rua sem saída.
*
O
somatório de tais fatores determinou que, no início de fevereiro de
2015, ocorressem reuniões entre dirigentes sindicais de diversas
categorias, preocupados com os rumos (nada dialógicos) segundo os
quais as medidas governamentais eram tomadas. Os professores das
Universidades Estaduais declararam greve entre os dias 06 e 11, bem
como muitos sindicatos de servidores técnicos das Universidades. No
dia 10, era a vez do Sindicatos dos Professores do Ensino Básico
declarar greve e tomar a linha de frente. Ao lado destas categorias,
logo iriam unir-se servidores da Saúde e Agentes Penitenciários,
tendo em vista que os Policiais e Bombeiros (que tampouco receberam
suas remunerações pela Operação Verão 2014/2015 no litoral
paranaense) são proibidos constitucionalmente de fazer greve.
Tratava-se, pois, de utilizar-se de um direito constitucional
fundamental (o direito de greve, art. 9º) para assegurar-se de
direitos igualmente fundamentais, como o direito à percepção ao
terço de férias (art. 39, § 3º c/c art. 7º, XVII, da
Constituição de 88). O que hoje ficou conhecida como “luta dos
professores”, devido ao protagonismo da APP-Sindicato na
organização e unificação da greve, estabelece-se como uma greve
geral do funcionalismo público. Esse deslocamento pregnante da
luta já era sensível na medida em que as assembleias das diversas
categorias passavam a convocar os indicativos de greve não mais como
greves “de categoria”, mas como assembleias para decidir sobre a
“adesão à greve geral do funcionalismo”. É preciso reconhecer
o papel fundador da mobilização universitária e, sobretudo, o
papel agregador e o efeito de catálise proporcionado pela adesão
dos professores e servidores do Ensino Básico.
As
primeiras reações sociais são contrárias à greve. Diante das
primeiras luzes do movimento, a primeira-dama Fernanda Richa vai a
público afirmar que “os professores [do Ensino Básico] ganham
muito e produzem pouco”. Afirmação interessante. Secretária de
Estado, a primeira-dama, assim como os demais membros do primeiro
escalão do Poder Executivo paranaense, não
abriu mão do aumento de remuneração no início de 2015, ainda
que o
impacto orçamentário seja de algumas dezenas de milhões.
Segundo dados do Portal da Transparência, a última remuneração da
primeira-dama (filha do dono do extinto Banco Bamerindus),
equivalente a R$ 32.882,74, permitiria pagar mais de 19 professores
que “ganham muito e produzem pouco”, cujo piso é de R$ 1.669,95
(padrão de 40h). O que os Richa não compreenderam é que a greve
(1) não tem o caráter de paralisação de categoria, mas é geral;
(2) que o interesse do servidor público não reflete um mero
interesse de classe; pelo contrário: o interesse de classe vai ao
encontro do interesse público. O plexo de direitos sociais dos
servidores públicos, protegido pelo princípio constitucional
implícito da proibição do retrocesso
em matéria social, não está na contramão do interesse público ou do clamor popular por serviços públicos de melhor qualidade –
está no mesmo sentido.
*
Enquanto
a opinião pública era disputada pelas assessorias de imprensa
(oficial e não-oficial) do governo Richa e pelo movimento de
contrainformação produzido pelos sites de
sindicatos, políticos alinhados à pauta da greve geral dos
servidores e multiplicado pelo poder das redes sociais, as medidas do
governo seguiam sua tramitação “extraordinária”. A aprovação
da Comissão Geral determinou que o movimento grevista, que já se
concentrava nas imediações da Praça Nossa Senhora de Salete, no
Centro Cívico de Curitiba, ocupasse a Assembleia
Estadual. Mais uma vez, o governador não aparece para dialogar, mas
para qualificar o movimento de “antidemocrático” e chamar os
servidores grevistas de “baderneiros”. Essas duas alcunhas não
são gratuitas e talvez revelem mais sobre o governo daquele que as
profere do que sobre o movimento.
Chamar
o movimento grevista de antidemocrático não passa de uma projeção
singularmente interessante do próprio governo Richa. Em um momento
em que a opinião pública já conhecia as razões da greve e tomava
o partido dos servidores e dos professores, a tal ponto que os
noticiários de meio-dia já não podiam pôr panos quentes no tema,
Richa assistia a uma
reviravolta nos intestinos da Assembleia: enquanto tentava fazer
aprovar o pacotaço a qualquer custo, percebia os primeiros efeitos
da soma da mobilização dos servidores à formação da opinião
pública: sua base aliada começava a diminuir; os deputados novatos
e os preocupados com as eleições vindouras eram cobrados pelos
grevistas e obrigados a vergar-se à reduzida oposição. Isso ficou
conhecido como o
“racha” na base do governo Richa, que outrora podia massacrar
uma reduzida oposição de 06 deputados, mas hoje – pelo menos no tema
“pacotaço” - conta com 22 deputados. A greve geral teve o
mérito claro de rachar o consenso fictício que estruturava a base
do governo, mas fez isso como um “efeito de real”, introduzindo
no princípio representativo um real ao qual não se pode permanecer
indiferente. Para Richa e para os deputados alinhados ao governo,
os manifestantes que ocupavam a Assembleia criavam um “obstáculo
à reunião do Legislativo”; logo, um entrave à própria
democracia. Todavia, se nos permitirmos pensar a contrapelo, talvez
seja o caso de perguntar-se: “que qualidade democrática tem uma
Assembleia Legislativa que subverte o procedimento legislativo
ordinário, a ponto de o espaço físico da Assembleia ter de ser ocupado por manifestantes que objetivam garantir o mínimo
grau das condições de procedimentalidade democráticas?”; isto
é, naquele caso, ocupar (que
as mídias tradicionais se comprazem em chamar de “invadir”) era
a única opção para garantir que a Assembleia e Richa não
destruíssem de uma vez por todas o princípio que julgavam defender
(a democracia). Não aprenderam que, por definição, tentar jogar a
democracia contra o povo só revela quem é povo e quem não é...
Por
isso, a segunda alcunha de
Richa é ainda mais
reveladora: Richa chamou os professores de “baderneiros”,
expressão de sucesso, mas
moralista e de todo
imprópria, criada em junho de 2013 e repetida infatigavelmente pelas
mídias de massa para nomear os adeptos das ações diretas nas
manifestações. Isso se deve
ao fato de os servidores terem “invadido” a Casa do Povo. É
nesse ponto, em que a greve geral se aproxima da estética da
ocupação, que se pode perceber que uma linha de fuga de
junho de 2013 atravessa por
onde menos se espera.
O
movimento sindical aprendeu com junho e
tem se mostrado capaz de reconfigurar seus modos de combate político:
(1)
aprendeu que os direitos não passam de abstrações, que só podem
ser assegurados por meio da ação política direta (a
ocupação é uma ação direta);
(2)
aprendeu a necessidade de uma
pauta clara, integradora, e a potência negocial que as greves gerais
encerram – ainda que sua organização tenha de ser protagonizada
por alguns sindicatos determinados, que agem como polos de catálise
política;
(3) compreendeu a importância da generalidade e da horizontalidade – a greve geral
não é pensada como construção de uma categoria, como interesse de
classe vazio: ela suporta os interesses de uma infinidade de classes
“supranumerárias” (para o governo), como é o esteio do próprio
interesse público (concretizado na questão da melhoria dos serviços
públicos e, portanto, na luta contra o desmonte do Estado de
Bem-Estar Social);
(4)
Tornou visível que a
crise não é apenas financeira ou orçamentária. Os sindicatos
pararam de comprar ilusões. A crise financeira do Estado é, hoje, o
nicho pelo qual se pode ver a crise mais profunda: que não é
financeira ou técnica, mas política – a crise da representação.
A compreensão do caráter fictício da representação política
ficou clara na medida em que os servidores e professores entram em
greve geral e ocupam fisicamente a Assembleia Estadual para assegurar
o nível procedimental mínimo do jogo democrático;
(5)
O movimento não apenas desconstitui uma ficção, mas sua
resistência arrancou efeitos de real: rachou a base do governo,
reduziu forçosamente a bancada, gerou recuos
relativos nos projetos de Richa. Todavia, Richa deve reapresentar o pacote, dessa vez sob o procedimento legislativo ordinário, nos próximos dias.
Enquanto
a resistência atravessa o Carnaval, e prepara a Mobilização
dos Cem Mil em todo o Estado, de que as mídias em geral não
falam, Richa tenta fazer um uso estratégico de comunicados oficiais.
Pinta a realidade como se as mensagens executivas que foram veículos
do “pacotaço” jamais houvessem existido. Richa recua e a greve é
cada vez mais geral e cada vez mais ampla, diante da possibilidade concreta de reapresentação das medidas à Assembleia. Prova disso: os servidores do DETRAN e
os servidores técnicos das Universidades, que estavam em processo de
paralisação, aderiram à greve dos servidores. Já são mais de 40
categorias paralisadas ou em greve em todo o Estado.
Os
desafios coletivos passam a ser:
(1)
manter a generalidade e a organização da greve;
(2)
permanecer aberto
ao diálogo sem negociar o inegociável (direitos sociais dos
servidores e o interesse público que os fundam);
(3)
não flexibilizar as pautas;
(4)
exigir a adoção de um bom número de medidas alternativas, claras e
demonstradas, antes de qualquer proposta de flexibilização de
pautas;
(5)
como quisera Foucault, “não
cair de amores pelo poder”;
(6)
nos sindicatos, movimentos e
corações, seguir
aprendendo com junho e ensinando com junho.
Amanhã Vai Ser Maior.
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