Paraná: a greve geral (não) acabou

27 fevereiro, 2015



    Parecem já não haver mais razões para manter a greve. O governo do Paraná cedeu tanto à pressão dos professores e servidores do Ensino Básico quanto à dos trabalhadores do Ensino Superior. No mesmo dia em que mais de 50 mil pessoas participaram de uma das maiores mobilizações da história do Estado do Paraná e da cidade de Curitiba, o Secretário da Casa Civil do Estado, Eduardo Sciarra (PSD, e ex-coordenador da campanha de Richa) veio a público afirmar, após os primeiros dias de negociações com a APP-Sindicato, que o governo havia não apenas “esgotado” a pauta dos servidores, mas avançado em outros pontos que sequer constituíam pauta da greve. Mesmo o governador do Paraná, Carlos Alberto Richa (PSDB), apareceu para dar entrevistas, tentando recuperar algo da aura prestigiosa que sempre lhe foi afiançada pela base governista – e que jamais passaria por qualquer teste de realidade.
    Na última entrevista, feita pela Folha de São Paulo, Richa teve a oportunidade de reafirmar o que constitui a pedra fundamental de sua compreensão pessoal sobre o conteúdo do interesse público: “O que interessa à população são as obras”. Ao fazê-las, confessou ter endividado (segundo ele, “ainda mais”) o Estado – em um momento particularmente interessante, em que a operação lava-jato traz à lume a maciça e histórica participação de empreiteiras em esquemas de corrupção transpartidários. Claro, o governador diz que foi “corajoso” ao gastar mais do que se arrecada e – como não poderia deixar de ser – faz a responsabilidade pela deterioração das finanças do Estado retroagir ao governo Requião, que teria deixado uma dívida de 4,5 bilhões, e justifica-se no contexto da crise nacional: responsabilidade que atribui ao governo Dilma (e que Dilma atribui ao mercado internacional and so on...). Eis, por certo, uma clara demonstração de coragem, que lhe falta quando se toca no tema da responsabilidade política por atos de sua própria gestão, que em 2015 entra no quinto ano.
    Para explicar os recuos resultantes da greve, Richa disse à Folha que “houve um erro involuntário” na apresentação das medidas rechaçadas pelos servidores. Já à Gazeta do Povo (que pertence ao Grupo RPC, afiliada Globo), Richa admitiu que o fim do quinquênio dos servidores “foi colocado na pauta de negociações para negociar, para ceder.”  Ou seja, ameaçar escamotear direitos fazia parte de sua tática para negociar a aprovação do essencial: fundir o único fundo superavitário do Estado (o fundo previdenciário dos servidores) com o Fundo Financeiro para obter controle e poder dispor de seus recursos, em prejuízo bastante provável das futuras aposentadorias do funcionalismo, considerando que Richa gasta mais do que arrecada porque, segundo autodeclaração, é alguém “corajoso” e com “sensibilidade”, e ciente de que nós, população, “gostamos de obras”.
    A euforia dos primeiros dias de negociação com a APP-Sindicato talvez tenha feito Richa sair da sombra para cantar vitória cedo demais. No dia 25, o governador declarou que “voltaria atrás” no inessencial (quinquênios, anuênios, demais direitos sociais dos servidores do Estado) para conseguir aprovar o “essencial”: fundir os fundos previdenciário e financeiro, escamoteando as reservas de aposentação dos servidores, oriundas de desconto compulsório em folha. Em suma, o tema tão delicado quanto técnico da Previdência dos Servidores (que a APP-Sindicato, com algumas imprecisões, explicou aqui) deve ser objeto de projeto de lei a ser reenviado à Assembleia em março.
    No mesmo dia em que o governo Richa anunciou o empenho de 15 milhões de reais em publicidade, a RPCTV continua a cobrir a greve dos professores enfocando dois pontos: (1) o que chamou de “fim das negociações” entre governo e sindicatos – que, em verdade, é o fim das primeiras rodadas de negociação; (2) a “incerteza” sobre a volta às aulas e o suposto prejuízo que a greve acarreta aos alunos, que permanecem sem aulas. Esse shift sutil na forma de tratar a greve geral é importante. Por certo, revela o alinhamento da RPC com uma certa “urgência” de decretar o fim da greve geral (pois Richa sabe que a organização e força da greve geral tem sua fonte nos professores do Ensino Básico; as demais categorias são menos organizadas e menos numerosas). Talvez revele que assim como Richa usa de certa dissimulação tática (ameaçar direitos para conseguir aprovar a fusão dos fundos), o grupo RPC, que até agora não teve outra alternativa diante do contexto senão cobrir a greve geral com relativa independência, sob pena de perder credibilidade, começa a alinhar-se ao discurso de Eduardo Sciarra: “Esgotou-se a pauta e avançamos além dela”; “the game is over”. Isso se soma à antecipação de acordo entre governo e manifestantes que foi protagonizada pelo líder do governo na Assembleia, Luiz Claudio Romanelli (PMDB), o que obrigou a APP-Sindicato a desmenti-lo no mesmo dia 25.
    Diante das declarações de Sciarra, e da forma como a afiliada Globo tem tratado o tema da greve – alinhando-a equivocadamente, aliás, à greve (aparentemente, e salvo melhor juízo) patronal dos caminhoneiros – a APP-Sindicato teve, uma vez mais, de vir a público afirmar que a greve continua ao menos até o dia 04.03, quando deverá ter lugar uma Assembleia Geral para discutir o fim da greve. Além disso, o Presidente da APP-Sindicato, Prof. Hermes Leão, foi enfático ao afirmar que “as respostas do governo à pauta são insuficientes” e que “no ambiente de hoje, a assembleia seria pela continuidade da greve por tempo indeterminado”. Portanto, a pauta não foi esgotada, muito menos o governo foi além dela, como quisera Sciarra. Pelo contrário, falta responder à totalidade das reivindicações e efetivar as medidas já anunciadas pelo governo.
    Nas Universidades, o contexto não é mais favorável ao governo Richa. Ainda que a APIESP (Associação Paranaense das Instituições de Ensino Superior Público do Paraná, que não representa os servidores destas instituições) tenha trazido notícias algo alentadoras, a pauta dos Servidores não foi contemplada em sua integralidade, o que conduz à manutenção da greve por tempo indeterminado em todas as Universidades Estaduais. O tópico específico mais sensível parece ser a proposta de “autonomia universitária” que, na prática, usurpa a autonomia financeira das Universidades Estaduais, subordinando sua gestão orçamentária ao governo estadual central – o que, como já afirmei outrora, contraria a Constituição da República (art. 207).
    As mensagens que Richa enviou à Assembleia em fevereiro tentavam organizar “por cima” uma greve frágil, com pautas difusas e fadada a ceder rapidamente ao primeiro aceno de frouxidão da austeridade tucana. No entanto, os servidores estaduais tiveram o mérito de reorganizá-la autonomamente em torno dos pontos de unificação transcendentes às categorias, que garantiam não apenas direitos universais dos servidores, mas corolários do serviço público cotidianamente prestado ao povo paranaense. Dessa forma, atingiram o cerne do interesse público cujo conteúdo Carlos Alberto (“o-povo-ama-obras”) Richa, malgrado seus anos de experiência política, ainda não compreendeu.
    Os recentes recuos de Richa foram estrategicamente organizados para tentar enfraquecer o movimento e facilitar o deslocamento da opinião pública, que hoje apoia os professores, para o lado do governo. Contudo, no frigir dos ovos, os recuos podem ser explorados pelo movimento grevista em um sentido positivo que termina por fortalecê-lo em dois sentidos: (1) Primeiro os recuos são positivos em si mesmos. Recuos de Richa são vitórias dos servidores e do povo do Paraná porque mantêm direitos sociais intocados; (2) segundo, porque na medida em que a massa confusa de medidas esdrúxulas e atentatórias contra o interesse público se dissipa, a greve geral passa a gravitar ao redor do “núcleo essencial” que Richa quisera dissimular a todo custo, e sobre o qual a RPCTV cala (e a mídia impressa da RPC, a Gazeta do Povo, tem falado um pouco mais, mas não o bastante): a luta comum dos servidores contra o confisco da Previdência, que já ganha adeptos (adversários tradicionais de Richa) no Congresso Nacional.
    Só se pode esperar que nós, os professores e servidores, sejamos capazes de conservar e expandir a virtù com que temos conduzido a greve, a revolta popular e as negociações com o governo. Os alunos não serão prejudicados, como certa mídia se compraz em dizer, na esteira das declarações governamentais que pretendem dar um fim simbólico à greve que continua a pulsar no coração do Centro Cívico. Os professores são obrigados a cumprir determinada carga horária em sala de aula, e ela será integralmente cumprida seja com início em fevereiro, março, abril ou mais além – malgrado a greve, que não deve terminar no dia 04 (cf. aqui o pronunciamento do Prof. Hermes Leão e aqui, a nota do SindiUEPG). Basta lembra que se os professores e servidores se demoram nas reivindicações e no exercício político de sua revolta, a única causa está (está?) no Palácio Iguaçu.

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@_mdcc

Para entender a greve geral no Paraná

19 fevereiro, 2015






Era outubro de 2014. Ao contrário do tenso embate eleitoral que definia o cenário nacional, no Paraná tudo parecia estar resolvido: o governador Beto Richa era reeleito no primeiro turno, com quase 56% dos votos válidos enquanto Dilma (PT) e Aécio (PSDB) encaminhavam-se à disputa pelo segundo turno das eleições majoritárias. Enquanto o país elegia o Congresso Nacional mais conservador desde 1964, o governador reeleito do Paraná era agraciado não apenas com a reeleição no primeiro turno por uma maioria relativamente ampla, mas com uma composição que lhe era imensamente favorável na Assembleia Legislativa do Paraná. Dos 54 deputados estaduais eleitos, apenas 06 fariam oposição ao governo Richa (PSDB). Eleito, em 06 de outubro o governador foi à televisão afirmar que “as finanças estão em ordem” e que “o melhor ainda está por vir”.

Duas semanas depois dessa declaração promissora, a primeira medida de austeridade: o governo estadual determina o corte de 30% nas despesas de todas as áreas do Estado, exceto Saúde e Segurança Pública. “O melhor” por vir começava a ser definido em dezembro do mesmo ano, com medidas de ajuste fiscal incidentes, principalmente, sobre a alíquota do IPVA, ICMS de combustíveis, custas judiciais etc., bem como uma parca reestruturação de secretarias do Poder Executivo (em 2013, eram 29; passaram a ser 26), redução do orçamento da Defensoria Pública do Estado e implantação de desconto previdenciário para os aposentados. Tudo foi aprovado em regime de urgência, sob as críticas da pequena oposição de 06 deputados estaduais. O pagamento do terço constitucional de férias dos servidores foi adiado (e até agora, 19 de fevereiro, permanece inadimplido).

No início de fevereiro, o governo Richa envia duas mensagens à Assembleia Estadual, que previam, entre outras medidas:
1) Medidas de natureza fiscal e parafiscal, como o parcelamento de débitos tributários (geralmente, débitos oriundos de atividade empresarial) e a “nota fiscal paranaense” (iniciativa semelhante à do governo paulista);
2) Medidas que afetam gratificações por tempo de serviço dos servidores públicos da ativa, como o fim dos quinquênios (gratificação de 5% do salário-base incorporada à remuneração do servidor a cada cinco anos, até o limite de 25%) e a redução dos anuênios (gratificações devidas aos servidores a partir do 31º ano de serviço público, de 5% ao ano, até o limite de 25%, cumuláveis com os quinquênios). Resguardava-se, porém, o direito adquirido dos servidores da ativa que já percebiam quinquênios e anuênios;
3) Medidas que afetam a previdência dos servidores: não apenas estabelecia-se o teto da previdência como limite às aposentadorias dos futuros servidores (R$ 4.663,75 em valores atualizados), mas cogitava-se a criação de um fundo previdenciário paralelo, a ser gerido por entidade a ser criada (a PREVCOM), de modo que o servidor optante teria de contribuir com 11% da remuneração para a ParanáPrevidência e 7,5% para a PREVCOM (18,5% de desconto mensal sobre a remuneração). Além disso, e insidiosamente, as mensagens continham uma autorização para dissolver o Fundo Previdenciário dos atuais servidores (superavitário em aproximadamente R$ 8 bilhões);
4) Outras medidas administrativas colaboraram para a instauração de movimentos de paralisação e de greve: por exemplo, a dispensa de 30% do pessoal contratado pelo próprio Richa em regime precário (em regime de urgência via processo seletivo simplificado) no início do ano letivo de 2015, sem perceber as devidas verbas indenizatórias – o que deixou as escolas públicas estaduais sem condições materiais e de pessoal para retomar as atividades em 2015; a inserção de todas as Universidades Estaduais no META 4, e sua subordinação ao Conselho de Gestão Administrativa e Fiscal do Estado (a exemplo do que ocorreu com a UEL em 2013) restringiria de forma inconstitucional (art. 207, Constituição da República de 1988) o exercício do princípio da autonomia administrativa e financeira das Universidades, sem qualquer diálogo com a comunidade (a não ser por uma comissão de Reitores cujas intenções, por melhores que sejam, não podem representar a pluralidade de interesses da totalidade comunidade acadêmica).

Tais mensagens foram enviadas por Richa à Assembleia Estadual com pedido de urgência na tramitação e uma clara determinação aos deputados integrantes da base do governo tucano para que sua apreciação se desse em “Regime de Comissão Geral” - regime mais célere, mas que cobra seu preço à democracia ao subverter a ordinária discussão das matérias (e o “pacotaço” possui uma diversidade tecnicamente desaconselhável delas) afeta não a comissões temáticas específicas (como de lei), mas a uma “Comissão Geral” que terminaria por legitimá-lo pelo procedimento. Em suma, o serviço público do Estado, e seus servidores, entravam em uma rua sem saída.

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O somatório de tais fatores determinou que, no início de fevereiro de 2015, ocorressem reuniões entre dirigentes sindicais de diversas categorias, preocupados com os rumos (nada dialógicos) segundo os quais as medidas governamentais eram tomadas. Os professores das Universidades Estaduais declararam greve entre os dias 06 e 11, bem como muitos sindicatos de servidores técnicos das Universidades. No dia 10, era a vez do Sindicatos dos Professores do Ensino Básico declarar greve e tomar a linha de frente. Ao lado destas categorias, logo iriam unir-se servidores da Saúde e Agentes Penitenciários, tendo em vista que os Policiais e Bombeiros (que tampouco receberam suas remunerações pela Operação Verão 2014/2015 no litoral paranaense) são proibidos constitucionalmente de fazer greve. Tratava-se, pois, de utilizar-se de um direito constitucional fundamental (o direito de greve, art. 9º) para assegurar-se de direitos igualmente fundamentais, como o direito à percepção ao terço de férias (art. 39, § 3º c/c art. 7º, XVII, da Constituição de 88). O que hoje ficou conhecida como “luta dos professores”, devido ao protagonismo da APP-Sindicato na organização e unificação da greve, estabelece-se como uma greve geral do funcionalismo público. Esse deslocamento pregnante da luta já era sensível na medida em que as assembleias das diversas categorias passavam a convocar os indicativos de greve não mais como greves “de categoria”, mas como assembleias para decidir sobre a “adesão à greve geral do funcionalismo”. É preciso reconhecer o papel fundador da mobilização universitária e, sobretudo, o papel agregador e o efeito de catálise proporcionado pela adesão dos professores e servidores do Ensino Básico.

As primeiras reações sociais são contrárias à greve. Diante das primeiras luzes do movimento, a primeira-dama Fernanda Richa vai a público afirmar que “os professores [do Ensino Básico] ganham muito e produzem pouco”. Afirmação interessante. Secretária de Estado, a primeira-dama, assim como os demais membros do primeiro escalão do Poder Executivo paranaense, não abriu mão do aumento de remuneração no início de 2015, ainda que o impacto orçamentário seja de algumas dezenas de milhões. Segundo dados do Portal da Transparência, a última remuneração da primeira-dama (filha do dono do extinto Banco Bamerindus), equivalente a R$ 32.882,74, permitiria pagar mais de 19 professores que “ganham muito e produzem pouco”, cujo piso é de R$ 1.669,95 (padrão de 40h). O que os Richa não compreenderam é que a greve (1) não tem o caráter de paralisação de categoria, mas é geral; (2) que o interesse do servidor público não reflete um mero interesse de classe; pelo contrário: o interesse de classe vai ao encontro do interesse público. O plexo de direitos sociais dos servidores públicos, protegido pelo princípio constitucional implícito da proibição do retrocesso em matéria social, não está na contramão do interesse público ou do clamor popular por serviços públicos de melhor qualidade – está no mesmo sentido.

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Enquanto a opinião pública era disputada pelas assessorias de imprensa (oficial e não-oficial) do governo Richa e pelo movimento de contrainformação produzido pelos sites de sindicatos, políticos alinhados à pauta da greve geral dos servidores e multiplicado pelo poder das redes sociais, as medidas do governo seguiam sua tramitação “extraordinária”. A aprovação da Comissão Geral determinou que o movimento grevista, que já se concentrava nas imediações da Praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cívico de Curitiba, ocupasse a Assembleia Estadual. Mais uma vez, o governador não aparece para dialogar, mas para qualificar o movimento de “antidemocrático” e chamar os servidores grevistas de “baderneiros”. Essas duas alcunhas não são gratuitas e talvez revelem mais sobre o governo daquele que as profere do que sobre o movimento.

Chamar o movimento grevista de antidemocrático não passa de uma projeção singularmente interessante do próprio governo Richa. Em um momento em que a opinião pública já conhecia as razões da greve e tomava o partido dos servidores e dos professores, a tal ponto que os noticiários de meio-dia já não podiam pôr panos quentes no tema, Richa assistia a uma reviravolta nos intestinos da Assembleia: enquanto tentava fazer aprovar o pacotaço a qualquer custo, percebia os primeiros efeitos da soma da mobilização dos servidores à formação da opinião pública: sua base aliada começava a diminuir; os deputados novatos e os preocupados com as eleições vindouras eram cobrados pelos grevistas e obrigados a vergar-se à reduzida oposição. Isso ficou conhecido como o “racha” na base do governo Richa, que outrora podia massacrar uma reduzida oposição de 06 deputados, mas hoje – pelo menos no tema “pacotaço” - conta com 22 deputados. A greve geral teve o mérito claro de rachar o consenso fictício que estruturava a base do governo, mas fez isso como um “efeito de real”, introduzindo no princípio representativo um real ao qual não se pode permanecer indiferente. Para Richa e para os deputados alinhados ao governo, os manifestantes que ocupavam a Assembleia criavam um “obstáculo à reunião do Legislativo”; logo, um entrave à própria democracia. Todavia, se nos permitirmos pensar a contrapelo, talvez seja o caso de perguntar-se: “que qualidade democrática tem uma Assembleia Legislativa que subverte o procedimento legislativo ordinário, a ponto de o espaço físico da Assembleia ter de ser ocupado por manifestantes que objetivam garantir o mínimo grau das condições de procedimentalidade democráticas?”; isto é, naquele caso, ocupar (que as mídias tradicionais se comprazem em chamar de “invadir”) era a única opção para garantir que a Assembleia e Richa não destruíssem de uma vez por todas o princípio que julgavam defender (a democracia). Não aprenderam que, por definição, tentar jogar a democracia contra o povo só revela quem é povo e quem não é...

Por isso, a segunda alcunha de Richa é ainda mais reveladora: Richa chamou os professores de “baderneiros”, expressão de sucesso, mas moralista e de todo imprópria, criada em junho de 2013 e repetida infatigavelmente pelas mídias de massa para nomear os adeptos das ações diretas nas manifestações. Isso se deve ao fato de os servidores terem “invadido” a Casa do Povo. É nesse ponto, em que a greve geral se aproxima da estética da ocupação, que se pode perceber que uma linha de fuga de junho de 2013 atravessa por onde menos se espera.

O movimento sindical aprendeu com junho e tem se mostrado capaz de reconfigurar seus modos de combate político:
(1) aprendeu que os direitos não passam de abstrações, que só podem ser assegurados por meio da ação política direta (a ocupação é uma ação direta);
(2) aprendeu a necessidade de uma pauta clara, integradora, e a potência negocial que as greves gerais encerram – ainda que sua organização tenha de ser protagonizada por alguns sindicatos determinados, que agem como polos de catálise política;
(3) compreendeu a importância da generalidade e da horizontalidade – a greve geral não é pensada como construção de uma categoria, como interesse de classe vazio: ela suporta os interesses de uma infinidade de classes “supranumerárias” (para o governo), como é o esteio do próprio interesse público (concretizado na questão da melhoria dos serviços públicos e, portanto, na luta contra o desmonte do Estado de Bem-Estar Social);
(4) Tornou visível que a crise não é apenas financeira ou orçamentária. Os sindicatos pararam de comprar ilusões. A crise financeira do Estado é, hoje, o nicho pelo qual se pode ver a crise mais profunda: que não é financeira ou técnica, mas política – a crise da representação. A compreensão do caráter fictício da representação política ficou clara na medida em que os servidores e professores entram em greve geral e ocupam fisicamente a Assembleia Estadual para assegurar o nível procedimental mínimo do jogo democrático;
(5) O movimento não apenas desconstitui uma ficção, mas sua resistência arrancou efeitos de real: rachou a base do governo, reduziu forçosamente a bancada, gerou recuos relativos nos projetos de Richa. Todavia, Richa deve reapresentar o pacote, dessa vez sob o procedimento legislativo ordinário, nos próximos dias.

Enquanto a resistência atravessa o Carnaval, e prepara a Mobilização dos Cem Mil em todo o Estado, de que as mídias em geral não falam, Richa tenta fazer um uso estratégico de comunicados oficiais. Pinta a realidade como se as mensagens executivas que foram veículos do “pacotaço” jamais houvessem existido. Richa recua e a greve é cada vez mais geral e cada vez mais ampla, diante da possibilidade concreta de reapresentação das medidas à Assembleia. Prova disso: os servidores do DETRAN e os servidores técnicos das Universidades, que estavam em processo de paralisação, aderiram à greve dos servidores. Já são mais de 40 categorias paralisadas ou em greve em todo o Estado.

Os desafios coletivos passam a ser:
(1) manter a generalidade e a organização da greve;
(2) permanecer aberto ao diálogo sem negociar o inegociável (direitos sociais dos servidores e o interesse público que os fundam);
(3) não flexibilizar as pautas;
(4) exigir a adoção de um bom número de medidas alternativas, claras e demonstradas, antes de qualquer proposta de flexibilização de pautas;
(5) como quisera Foucault, “não cair de amores pelo poder”;
(6) nos sindicatos, movimentos e corações, seguir aprendendo com junho e ensinando com junho.

Amanhã Vai Ser Maior.

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