O úmido e o vivo
Olho a noite lá fora e recolho tudo o que tenho. Dirijo-me à sentinela do quinto andar da Biblioteca Nacional Mariano Moreno, situada numa bela Babel brutalista, que um dia foi dirigida por Jorge Luis Borges, e hoje parece dirigida por seguranças terceirizados.
– “¿Te retiras?”, disse ela apanhando a caneta.
– “Sí, me retiro.”, e lhe estendo minha credencial. Ela anota 19:04, e eu lhe digo “Gracias, buenas noches”. Escuto um “A vos” enquanto caminho na direção do locker número 08.
Encasacado e de mochila nas costas, desço pelas escadas até o térreo. Lá, me aguarda uma catraca eletrônica, onde deposito o cartão que libera minha saída. Um enorme vão livre e dois lances de rampas depois, um pequeno trecho da Agüero me faz desaguar na Gen. Las Heras.
Caminho da Recoleta até o Alto Palermo. Ando por Las Heras até cruzar a Sánchez Bustamante. Logo me deparo com uma loja. Espelhos e molduras. Síntese de uma civilização global, as suas imagens narcísicas e os seus enquadres sensíveis prêt-à-emporter.
Na vitrine cheia de espelhos, em que os passantes costumam parar para tirar selfies, vejo que dois olhos me olham de volta lá de dentro. Hesito por um momento. Não consigo saber se o que me olha é uma estátua ou um cão. Tiro uma foto.
Eppure si muove!, pensei, e ao invés de evocar Galileu, minha cabeça foi parar muitos séculos antes, e me lembrei de Aristóteles. Embora hoje saibamos que as plantas também viajam no espaço à sua maneira, ele atribuía ao movimento, e à capacidade de locomover-se, a diferença entre a vida vegetal e a animal.
E olhando mais uma vez os seus olhos viscosos, o seu brilho incomum, me veio à mente a anamnese platônica; a metáfora do olho que se reconhece, e ao Ser, olhando-se por dentro, ou ao reconhecer a própria imagem refletida no olho de um outro. As duas mediações do “conhece-te a ti mesmo” – uma obsessão que não era nossa, mas a História mundial acabou por torná-la. Antes disso, talvez a obsessão fosse “conhece os mundos”, ou não houvesse obsessão – mas quem saberia?
E então me lembrei de Borges, em Deutsches Requiem, dizendo que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos; que não há debate abstrato que não seja um momento da eterna polêmica entre Platão e Aristóteles: “através dos séculos e latitudes”, escreveu ele, “mudam os nomes, os dialetos, as faces mas não os eternos antagonistas.”
Para mim, era substância demais. Ali, face a face com o indeterminado, eu não me sentia nem platônico, nem aristotélico. Não reconhecia nada. Nem a estátua, nem o cão, nem a mim mesmo no visgo escuro dos seus olhos úmidos. Não havia espelho, nem moldura. Nada de anamnese, ou hilemorfismo para encher os quadros. Ali estávamos, o cão e eu, em meio a outra coisa – como são os pequenos acontecimentos. Era só um visgo escuro, em cujo centro calmo eu via boiar um brilho especial no meio da noite. Era só um meneio curioso, uma cabeça imensa.
Agarrando usuários pelo bolso
Poucas horas antes, eu havia lido que Sam Altman, CEO da OpenAI, e Alex Blania, da coinvestida startup UBI, haviam lançado um batalhão de orbes pelo mundo para escanear a íris das pessoas. Em troca, elas receberiam tokens de uma criptomoeda que foi batizada de Worldcoin (WLD). Uma criptomoeda baseada em tecnologia blockchain, negociável a mercado, e que poderia subsidiar uma renda básica universal – só não se sabe como.
A aposta é de que, nos próximos anos, na medida em que a IA evolua para uma Inteligência Geral Avançada (AGI, em inglês), a IA deve criar um salto de produtividade e uma tal disrupção nas cadeias de remuneração das atividades humanas que não seria nem justo, nem moral, deixar de dar um fim à pobreza num mundo que enriquece cada vez mais.
Seus propósitos seriam, portanto, distributivos e anticocentracionários quanto à riqueza da IA. Nas palavras de Altman, “Se nós temos uma sociedade suficientemente rica para dar fim à pobreza, então nós temos a obrigação moral de encontrar um jeito de fazer isso”.
Mas os orbes, na verdade, são máquinas de certificação identitária. Na medida em que as IAs se desenvolvem a ponto de passar no teste de Turing, se torna cada vez mais difícil saber quando estamos diante de um humano ou de um não-humano, de um vivo ou de um não-vivo. Sobretudo, fica difícil saber com quem estamos falando, ou com o quê.
Ao invés de prolongarmos as proliferações dessa indeterminação, os orbes de Altman e Blania se propõem a verificar e autenticar a humanidade de cada um biometricamente. Assim que alguém encontra um orbe em New Delhi, Londres, Pretoria ou São Paulo, escaneia sua íris, recebe uma identificação única, um punhado de criptomoedas, e passa a ser um “humano verificado”. Fizeram até camisetas. Altman jura de pés juntos que a OpenAI não guarda dados das íris das pessoas, e dá a elas a opção de estocá-los de forma criptografada.
Enquanto isso, Elon Musk preparava um avanço no seu projeto de fazer do Twitter um Everything App. Musk rebatizou a plataforma objeto de uma aquisição hostil, no valor de 44 bilhões de dólares, matando a logo do passarinho. A logo havia sido criada em 2010 em homenagem a Larry T Bird, jogador do Boston Celtics.
Chega a ser irônico pensar que as fazendas de painéis solares, que estão no horizonte das alternativas de energia “limpa” para abastecer, entre outras coisas, os Teslas de Musk, sejam responsáveis por matar dezenas de milhares de pássaros nos Estados Unidos todos os anos.
Trágicas ironias à parte, Musk quer mais do que matar passarinhos azuis com o rebranding que transformou o Twitter em X Corp, e os tweets em xs. Ele quer empurrar a plataforma e seus usuários para dentro de uma nova cena de competição em que já estão o WeChat chinês, o PayTM indiano e o GoJek indonésio.
Embora o X de Musk pareça uma cópia ocidental de lógicas plataformadas de subsunção financeira e biopolítica que já existem no Leste asiático, Linda Yaccarino, CEO da X Corp., definiu X como o estado da arte dos Everything Apps: “X é o futuro estado de interatividade ilimitada – centrada em áudio, vídeo, mensagens, pagamentos e serviços bancários – criando um marketplace global para ideias, bens, serviços e oportunidades”.
Como a Meta, de Zuckerberg, X é a tentativa de fazer um mundo, mas um mundo não necessariamente à parte deste. Porque ele se instancia nos corpos, nos usuários, no seu tempo livre, na sua produtividade e força de invenção, bem como no valor dos efeitos de rede; estes, que podem dar valor, por exemplo, a uma moeda tirada do nada.
É o que, de repente, fez a Worldcoin, de Altman e Blania, adquirir alguma relevância. A partir de um empuxo neocolonialista que recrutou seu primeiro meio milhão de usuários em países de Terceiro Mundo por meio de táticas que foram descritas como “práticas de marketing enganosas”, e que “falharam em obter consentimento informado” dos usuários, o que começou como “uma base de dados biométricos dos corpos dos pobres” começa a se generalizar para todo o globo.
Isso porque a própria estratégia de Altman e Blania é fazer bola de neve com os efeitos de rede que a Worldcoin pode ajudar a desencadear: “o primeiro milhão de pessoas, os early adopters, as pessoas mais avançadas, convencem os próximos 10 milhões. Então, os próximos 10 milhões estão próximos dos normies [a subjetividade online mainstream, o “gado” da Internet]. Eles convencem os próximos 100 milhões. E estes são realmente os normies que convencem os outros poucos bilhões”, diz Blania.
Toda estratégia de negócios bem-sucedida na era das redes é, na verdade, uma gigantesca operação de silogismo social. Uma grande engenharia cibernética para se normalizar no socius, que começa levando algumas dezenas de milhares de pessoas a se engajarem e aceitarem as premissas da sua operação (geralmente, pobres e racializados do Terceiro Mundo). Então, com a mediação das ações de marketing adequadas e ajustadas ao público que se quer subsumir, os efeitos de rede fazem o resto, conseguindo embarcar uma boa parte do resto do mundo na sua propagação contaminante.
Uma moeda, como a Worldcoin, só adquire valor porque algumas pessoas a aceitam e acreditam nela; porque lhe atribuem valor, e imputam suas crenças a um instrumento de circulação social. Um pouco como as pessoas acreditam nas previsões oraculares de Musk sobre o Bitcoin. Basta que ele “tuíte” – perdão, que ele “éxe” –, e os efeitos de rede e o comportamento de rebanho dos seus seguidores funcionam como gigantescas alavancas distribuídas. Elas se encarregam de fazer com que suas profecias se tornem realidade.
Isso só acontece porque o que instancia o valor de uma moeda, tirada ou não do nada, é o tecido vivo e micrológico das relações estruturadas e estruturáveis entre os corpos e os vivos. Os conteúdos das suas crenças e desejos. A maior ou menor confiança que se atribui a ela, como Bruno Cava e Giuseppe Cocco explicaram em A vida da moeda.
O que Altman e Musk sabem bem – a par de seus primos asiáticos WeChat, PayTM e GoJek – é que não há forma melhor de agarrar usuários do que pelo bolso. Não apenas distribuindo free money por dez segundos de scan da sua íris, mas sendo o gatekeeper dos fluxos financeiros dos usuários, seu garantidor e seu milieu privilegiado de transações.
A billionformação dos mundos
Ao contrário do que afirmam bitcoiners e fintechers, não caminhamos para uma sociedade desbancarizada, mas na direção da vertiginosa multiplicação e dispersão da bancarização e da financeirização. A horizontalização das moedas e das finanças, facilitadas por sua abstração e digitalização, andam de mãos dadas com as desterritorializações que se impõem às atividades dos corpos e dos vivos. Então, não é que os bancos desapareçam; nem que os bancos estejam por toda parte. É que tudo vira banco, inclusive nós mesmos.
Mesmo os trabalhadores precisam gerir sua carreira como ativos de capital humano, suas férias e seu tempo livre como bancos de horas, sua aposentadoria e inatividade como uma reserva de ativos para o futuro – e que não pode acabar enquanto se estiver vivo. E, nas horas vagas, os usuários ainda pilotam os aplicativos de seus bancos para gerir recursos, fazer investimentos, adquirir seguros, pagar boletos, relatar golpes cibernéticos, aderir a ofertas etc.
Na medida em que atividade, dinheiro e informação se tornam fluxos intercambiáveis e fungíveis, ficamos muito próximos do que William Burroughs descrevia em The limits of control. Há um grupo de controladores que tenta governar pelo poder do dinheiro. E mil outros grupos de usuários que não param de fugir. De passar de uma plataforma a outra. Criar fakes. Bots. Hackear usos. Cancelar contas. Deletar dados. Desertar. Migrar para outros espaços de assemblage. Voltar. E reencontrar tudo alterado.
Por um lado, o poder do dinheiro não pode ser violento. Ele é soft, modulador, um ourives da liberdade individual. Isso não faz a violência desaparecer, mas implica uma nova articulação entre dinheiro, poder e violência e, possivelmente, uma distribuição de agenciamentos desiguais entre territórios centrais e periféricos. Fazer um ecossistema de relações e fluxos consistir numa nova Umwelt, na criação de um mundo circundante, é a operação de controle que anima todas as demais.
Como nos vídeos do Mr. Beast, um jogo é arranjado e escolhe os seus competidores, que estão lá por livre e espontânea vontade, e vão se submeter a seja lá o que for que o jogo proponha – porque conservam a crença de terem uma oportunidade de jogar e ganhar, mantendo a liberdade de sair a qualquer momento.
Mas sair é perder, ou deixar de ganhar. Então, o fear of missing out governa. O dinheiro tem poder, não só porque ele cria uma estrutura, institui as regras do jogo, inventa os mundos e os informa, mas porque ele canaliza os fluxos, apela à sua liberdade, os faz ceder, tenta ganhar dos corpos pelo cansaço.
Não sei se estamos saindo do capitalismo de plataforma, ou se já atingimos uma etapa verdadeiramente monopolista, que Nick Srnicek chamou de “Platform Wars”. O que a atual fase do desenvolvimento do capitalismo deixa claro são duas coisas. Primeira, que vivemos a época da billionformação dos mundos. Não é, nem nunca foi, sobre terraformar Marte, ou a própria terra – mais e mais informe a cada ano do Capitaloceno. Sempre foi sobre billionformar os mundos. Sobre o poder do dinheiro e o poder dos grupos de controle.
Segunda, que a billionformação dos mundos não nos deixará sair das antigas hierarquias e dimorfismos, nem das racializações, embora suas técnicas contenham (no duplo sentido de possuir e limitar) o potencial para produzir esse êxodo. Ainda que, nas técnicas de controle, nada esteja determinado de uma vez por todas.
Isso fica claro nos orbes autenticadores de humanos de Altman. Nos everything apps que já estão entre nós. Os controladores não podem deixar espaços nos controles, como a indeterminação que faz a percepção hesitar entre o deserto apagado do olhar de uma estátua e os olhos úmidos e vivos de um cão. Precisamos saber, sempre, em que mundo estamos. Precisamos saber de onde procede o que estamos vendo, e com quem, ou com o quê, estamos falando.
Que os índices biométricos e, no fundo, os corpos, funcionem como as instâncias que permitem verificar os humanos é prenhe de consequências. Basta lembrar que Roberto Esposito, em Persons and things, afirmou que o corpo era precisamente o limiar de indeterminação entre pessoas e coisas que tornava possível determinar a diferença significante entre uma pessoa e uma coisa na experiência do direito romano antigo.
O corpo de um escravizado, então, pode ser mais coisa do que pessoa, e estar suscetível à apropriação e à circulação em dado regime. O corpo de um cidadão pode ser mais pessoa do que coisa, e ter seu corpo e sua personalidade gravado pela indisponibilidade de certos direitos sobre o próprio corpo.
Tomando os corpos como substância estável, toda natureza e todo artifício podem ser verificados num dimorfismo, e isso nos deixa a sós com os ecossistemas da billionformação dos mundos. O sistema só diz “sim” às alucinações perceptivas programadas, e nenhuma delas muda nada. Nenhuma alteração de mundos é permitida. Assim como os controles, o corpo aparece como a sede da determinação dos dimorfismos e como leito de indeterminação que poderia levar a novas lutas.
Por isso, deveríamos nos perguntar o que acontece quando tudo devém-banco, ou fluxos financeiros livres. Quando a atividade do vivo, a informação e o dinheiro se tornam perfeitamente intercambiáveis. Acontece a billionformação dos mundos. Bilhões são gastos na esperança de fazer trilhões concorrerem para dentro do mesmo meio, da mesma plataforma, participando constitutivamente de um mesmo ecossistema de relações a que o dinheiro dá consistência.
Já não é mais o capitalismo liberando fluxos com uma mão e axiomatizando com a outra. São os bilionários liquidando o mundo com uma mão e destilando mundos com a outra.
A única boa notícia, que Burroughs percebeu com precedência, é que embora o dinheiro tenha poder, os controles não são totalmente determinados pelo dinheiro. Aliás, nem o dinheiro é determinado pelo dinheiro – mas pelas relações e pelos corpos, pelas curvas de crença, confiança e desejo.
Isso insere um vetor de indeterminação social e pragmática na equação dos mundos billionformados que estão na soleira das nossas portas. Mais que isso, o impasse dos controles, sob pena de se autossuprimirem, é o controlar sem jamais poderem ir até o fim do domínio da vontade, ou na automação do desejo.
Para mim, bastou o encontro com um cão na vitrine. Mas eu me pergunto que evento de percepção será necessário para entendermos que aí está toda a política do nosso tempo. As lutas pelos ritmos das modulações da vida e dos mundos. E que somos nós contra eles. Os grupos de usuários contra o grupos dos controladores.