No vídeo abaixo, Giorgio Agamben apresenta Contributions à la guerre en cours, de Tiqqun, livro publicado em França por Éditions La Fabrique, que reúne três textos atribuídos ao coletivo impessoal Tiqqun. São eles "Introduction à la guerre civile", "Une métaphysique critique pourraît naître comme science des dispositifs" et "Comment faire ?". Não encontrei o vídeo com legendas, então, para resolver o problema com a língua, posto abaixo uma rápida mas – espero eu – fiel síntese das principais ideias conceituais articuladas na apresentação de Agamben. Não se trata, contudo, de uma pura e simples tradução, embora o vídeo merecesse, uma vez que me parece uma apresentação nodal de Agamben, que lança luzes inclusive sobre certas acusações de "universalização" do conceito de biopoder. Remeto, ainda, ao recente post do texto de Agamben sobre o caso Tiqqun, traduzido em português. Finalmente, a quem quiser obter rápidas informações sobre o contexto do aparecimento-desaparecimento de Tiqqun em França, sugiro consultar esse pequeno verbete na en.wikipedia.
Em uma das aulas do mês de janeiro, no curso do ano de 1984 (Le courage de la verité: le gouvernement de soi et des autres II), Michel Foucault resumira, segundo Giorgio Agamben, sua estratégia a dois pontos: (1) substituir a história da dominação por uma análise dos procedimentos e técnicas de governamentalidade; (2) substituir a teoria do sujeito e a história da subjetividade pela análise de processos de subjetivação e das práticas de si. Dessa forma, segundo Agamben, Foucault abandonava os universais vazios que até então monopolizavam a atenção da teoria política – leiam-se, os conceitos de lei, soberania, vontade geral etc. – em benefício de uma análise detalhada de práticas e de dispositivos governamentais. Assim, enfocava-se mais do que o poder como hyposthase (substância, fundamento) separada, as relações de poder; mais que o sujeito transcendental, na posição fundadora, uma análise pontual de práticas e de processos de subjetivação.
É a esse quadro conceitual problemático, extraído do último curso ministrado por Foucault, que Agamben deseja fazer remontar o acontecimento Tiqqun. Sua novidade estaria em radicalizar e, ao mesmo tempo, nublar as duas estratégias foucaultianas que, em Foucault, não permitem a adequada localização de seu ponto de junção. Se na microfísica foucaultiana o poder circula por dispositivos jurídicos, linguísticos, materiais etc., para Tiqqun o poder não é nada mais do que essa circulação em que o poder não é endereçado à sociedade civil, mas coincide inteiramente com a sociedade e a vida: “O poder não é mais do que um imenso acúmulo de dispositivos nos quais vem prender-se o sujeito", ou os processos de subjetivação, segundo a leitura de Agamben. Em acréscimo, em um dos textos do livro assinado pelo coletivo anônimo Tiquun, que Agamben então apresentava (Une métaphysique critique pourraît naître comme science des dispositifs), lê-se que “Uma teoria do sujeito não é possível senão como teoria dos dispositivos”. Eis a prova conceitual de que Tiqqun promove a coincidência sem reservas das duas estratégias que em Michel Foucault encontram-se, aparentemente, cindidas: análise governamental e processos de subjetivação reúnem-se inextrincavelmente. Essa operação conceitual, irresolvida em uma zona opaca, faz coincidir teoria do sujeito, entendida como análise dos modos de subjetivação, e teoria dos dispositivos, compreendida como uma análise dos dispositivos governamentais disseminados no campo social.
Agamben afirma que nessa zona de opacidade, ou de indiferenciação - no que parece haver uma remissão explícita a um dos itens de seu Note sulla politica – os conceitos clássicos de teoria política perdem todo sentido. Seria, portanto, a partir dessa zona de indiferenciação, e unicamente a partir dela, que se deveria compreender a produção de conceitos (v.g., o bloom, a política estática, o partido imaginário, a guerra civil em seu sentido próprio) como a inserção das práticas de escritura, de pensamento e ação de Tiqqun. Não se trataria, por exemplo, continua Agamben, de uma escritura simplesmente anônima ou heterônoma, mas de um contexto em que o conceito de autor já não tem sentido. Foucault já teria mostrado (Qu'est-ce qu'un auteur?) que ao mesmo tempo em que a autoria funciona como dispositivo de subjetivação, ao atribuir um texto a um indivíduo, funciona, também, como dispositivo de imputação de responsabilidade penal. Por isso, não haveria qualquer sentido em fazer, no caso Tiquun, funcionar esse dispositivo de autor; de modo que nem Julien Coupat, nem qualquer de seus amigos, poderia, de fato, ser autor daqueles textos.
Ao final, Agamben analisa o caso Tiqqun sob o ponto de vista da legislação e dos procedimentos judiciários aplicados a Julien Coupat e seus amigos, e afirma que as leis atuais dos Estados ditos democráticos seriam mais opressivas que as leis vigentes na Alemanha ou na Itália no período fascista. Exemplarmente incompreensível seria a extensão do aparato biométrico, classicamente aplicado pelo Estado aos criminosos, a toda a população. Sob o ponto de vista da aplicação estatal dos dispositivos biométricos à população comum, “todo cidadão seria concebido como potencial criminoso ou terrorista” a partir de agora. Prova disso seria o fato de que todo homem que não se sujeita, ou denuncia, a aplicação dos aparatos biométricos pelo Estado aos cidadãos, é tratado como terrorista. Para terminar, Agamben lembra de uma história exemplar; durante a Guerra Civil espanhola, dois poetas viajavam aos Estados Unidos e, ao tentarem entrar no país, foram obstados pela polícia local que, depois de interrogatórios intermináveis, acusou-os de serem comunistas. Em resposta, um deles disse: “Eu não sou, e nunca fui, comunista; mas isso que você crê ser 'comunista', isso eu sou”. Agamben diz acreditar que hoje deveríamos responder: “"Não somos e jamais seremos terroristas; mas aquilo que vocês crêem ser ‘terrorista’, isso, nós somos”.