Desejo e entretempos, ou 2010: maio de 1968, janeiro de 1882...

31 dezembro, 2009




(Anônimo; Tinta sobre concreto. Paris, maio de 1968)
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“Para o ano novo – Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho que viver, pois ainda tenho que pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor. Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia apenas alguém que diz Sim!” (Friedrich Wilhelm Nietzsche; Sangue em pena sobre papel. Gênova, janeiro de 1882)


Territorialidades: duas pérolas

29 dezembro, 2009



Gostaria de dividir com vocês dois achados recentes: são os blogs de dois excelentes comentadores de Deleuze: Jean-Clet Martin, um dos primeiros e mais conhecidos filósofos que escreveram sobre a obra deleuziana (lembro, aqui, o seu La philosophie de Gilles Deleuze, saído pela coleção Petite Bibliothèque Payot, contando, inclusive, com uma consagradíssima Lettre-Préface de Deleuze, em que ele escrevia sobre o abandono no termo simulacro e de como se considerava um filósofo clássico, ao compreender a filosofia como sistema); a outra pérola é o blog do literato, especialista em Fernando Pessoa, que nas horas vagas relê e comenta seu velho professor da Universidade de Vicennes; trata-se de José Gil, filósofo e ensaísta moçambicano, autor de O imperceptível devir da imanência: sobre a filosofia de Deleuze, saído pela editora Relógio d'Água, de Lisboa, em 2008; José Gil mantem um blog muito bacana, chamado Diálogos com Gil, com textos e poemas. De fato, dois achados, duas pérolas, na blogosfera.


P.S.: Em tempo, prezados amigos: acabei de obter (agora, próximo das 15h00) uma autorização do Prof. Jean-Clet Martin para  traduzir e publicar um pequeno texto dele sobre a leitura que Slavoj Žižek fizera de Gilles Deleuze (como se fosse uma espécie hegeliano reprimido). É questão das mais interessantes, para quem gosta de Deleuze e de Žižek. Em alguns dias, em virtude do acúmulo de trabalho, devemos disponibilizar a tradução aqui.


O "castigo-pensador": de Supernanny a Rodin, em dez milissegundos

27 dezembro, 2009

 


(Jo Frost, a Supernanny, em uma imagem com quilos de Photshop, e “o pensador”, de Rodin: pode não parecer, mas essa obra de arte foi inspirada em uma criancinha de castigo...)

Nunca comentei aqui, mas tenho horror ao Jornal Hoje. Mesmo assim, continuo assistindo – religiosamente -, porque acho interessante como ele funciona esquizofrenizando. A maior esquizóide de todas – uma esquizóide bipolar que vai da depressão à euforia histérica em dez milissegundos – é a ex-atriz e jornalista Sandra Annenberg; não é incomum assistir a coisas do tipo: ela anuncia com gravidade, franzindo o sobrolho: “Morrem mais três pessoas em um deslizamento de terra na região de Itaquera, na grande São Paulo”. Dez milissegundos..., e se abre um riso demente: “E o verão será dominado pelos tons de laranja – veja como a cor foi recebida nas rasteirinhas que prometem colorir a estação!”Graças às férias de fim de ano, ontem à tarde, quem estava “re”-presentando o telejornal era Rosana Jatobá. Menos bipolar, uma atriz menos escolada que Sandra.
Em meio às matérias ordinárias pequeno-burguesas pós-orgiásticas natalinas (férias, rodovia dos bandeirantes congestionada, como limpar a prataria usando limão e pasta dental, direitos do consumidor na troca dos presentes, liquidações de fim de ano), uma das matérias de destaque era sobre a educação das criancinhas pequenas; algo do gênero, “conheça o castigo-pensador e aposente a palmada”. Falando sobre o tema, uma psicóloga que provavelmente não tem filhos, e se os tem deve usar a palmada, que afirmava que a violência não se justifica de forma alguma (no moralista retorna o recalcado – bendito Freud!), e que da palmada ao espancamento se vai num contínuo quase involuntário – nem se percebe. Tudo muito bonito, muito libertário. Dar limites com explicações, “bater não educa, nem é um gesto de amor, é uma simples punição” etc.
Não bastasse, apresentaram o “castigo-pensador” – uma estratégia à la Supernanny (aquela terapeuta comportamental britânica que trata as crianças como camundongos com alma – dêem uma zapeada no GNT, que é um canal com público-alvo “feminino”, em que se podem encontrar desde reality shows com pequenos cães obesos com donos obesos, numa competição para ver quem perde mais gramas de suas dezenas de quilos de sobrepeso, até conversações (nada) inteligentes com Diogo Mainardi, que também perde (nosso) tempo escrevendo uma coluna (que ninguém lê) para a Veja).
Mas fiquemos no castigo-pensador. A jornalista pergunta a uma criança de uns quatro anos como é o tal castigo, ao que ela responde: “Ah, não pode deitar, nem brincar; tem que ficar sentado, fazendo nada... pensando”.
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E desde quando pensar é castigo? Pior, desde quando pensar é fazer nada? Valeria um outro post para tentar compreender de que forma, hoje, os aparelhos disciplinares infantis são mobilizados para disciplinar o subjetivável, desmobilizar as potências do pensamento – a ponto de uma criança de quatro anos dizer que não faz nada, só pensa... como se pensar fosse algo muito natural, muito simples e inato, de que as aprendizes de supernannies brasileiras ou as apresentadoras lobotomizadas de telejornal da tarde pudessem ser capazes. Artaud, Proust e Deleuze escreveram sobre de que forma os signos violentam a pensar e a buscar a verdade – não há pensar sem violência (que não é física, mas simbólica – da mesma forma que uma palmada dificilmente é violência física, mas simbólica, medo de perder o amor dos pais, introjeção da má-consciência pela via familiar). Agora, o tal “castigo-pensador” vai além da palmada: introjeta a produção da má-consciência no próprio exercício do pensar niilista; de modo que o pequeno fica lá, isolado em seu cantinho: não pode deitar, nem brincar; fica lá fazendo nada, isto é, “pensando”...
Esse novo “castigo” faz algo semelhante ao que Nietzsche já identificara em nossos sistemas de justiça civilizados: por um golpe de gênio da moral (“é moralmente errado levantar a mão para um filho”, dizem os sacerdotes da psicologia contemporânea, que só não crêem ser errado tratar as crianças como camundongos, segundo o esquema estímulo-resposta/reforço/punição) se substitui um sistema de violência e de crueldade, de afectos, em que os signos se aplicavam ao corpo (o gesto da palmadinha, que não é nem inofensiva, nem antidisciplinar – não sejamos ingênuos) por um sistema educativo que, embora seja supostamente não-violento, identifica o pensar a uma inércia niilista e despede os pais de educarem os filhos: "vai lá pro seu cantinho; como você aprontou e já tem oito anos, vai perder oito minutos da sua infância... pensando!". O fato é que se educa cada vez menos para o pensamento, e agora, ainda transformam o tempo-consigo, necessário ao pensamento, em punição, em pedagogia barata de canal fechado.
Quem visse o pensador de Rodin, com todos os músculos do corpo retesados, violentados, como que prontos para a ação – embora a cabeça, apoiada sobre o punho cerrado, ainda estivesse voltada para um ponto fixo, no limiar indiscernível entre a interioridade da relação consigo e o ato: hesitando, exercitando o pensar como liberdade –, compreenderia que se, hoje, pensar virou uma estratégia de castigo e disciplina, uma forma de fazer com que todo empenho de tempo seja niilista (uma espécie de “fazer nada” como forma de administrar as condutas infantis), a única chance de sucesso dessa nova geração será a servidão e o automatismo – nunca a perfeição de uma ação verdadeiramente livre. Melhor para a Globo: não faltarão telespectadores - tampouco, apresentadores de telejornal.


As marinhas de Hugo: o novo, em imanência absoluta

25 dezembro, 2009

Vitor Hugo, Ma Destinée, 1867. Tamanho: 17,4 x 25,9 cm.
Pena, aguada de tinta marrom e guache sobre papel velino.
Paris, Maison de Victor Hugo (Inv. 927).


O novo posto em obra: eis o novo em imanência absoluta – momento de indecidibilidade em que os virtuais ainda não se atualizaram, e que as atualidades ainda não podem esgotar na obra. Novo como momento de potência de atualização e, portanto, novo como virtualidade. O novo só referível a si como signo da diferença que partilha de um si consigo mesma.
Como no plano de imanência deleuziano – ao mesmo tempo dado e a construir –, o novo é construído, como criação, e fabricado, como diferença, sob um fundo cuja imanência a si mesmo, e unicamente a si, constitui condição de sua absoluta diferença e pregnância, de um novo que, como diria Pelbart, “pega no corpo”.
O novo em imanência absoluta é o que o faz ser uma gravidez ignorada e eterna. Ignorada na medida em que o devir é sem mácula, porque desconhecido – e já deveríamos ter aprendido a reconhecer sua reluzente inocência no riso dançante de Zaratustra. Desde o radical, “criança” e “criação” andam de mãos dadas impunemente pelos jardins da infância. Eterna, na medida em que seu fundo sem par abre para si um território, e assim pode constituir o destempo de toda a modelagem e de toda pretensão sistematizadora, operando a linha de fuga, e devir em intensidades e sensações o novo que pode ser.
Linha de fuga que é sutil e súbita, como uma ondulação que acaricia a areia para ir desabar no mar. Deleuze já dissera que o plano de imanência é como um leito em que as vagas se enrolam e desenrolam, para virem enrolar-se novamente. No mar está o problema da imanência nas pinturas de Vitor Hugo, para Didi-Huberman: como desenhar uma onda sem representá-la? Apenas abandonando-se ao seu meio, que são o carvão, os pincéis, o cavalete, a tela ou o papel, como o meio em que a onda vai dobrar-se, desabar e desenrolar – e com o que tiver à mão, o pintor, com uma força e com um gesto irrepresentáveis, salpica a tinta e faz espuma – e com os pincéis faz derivar e jorrar uma maré errante como a própria vida. Assim, na tela em que a tinta jorra, a onda é criada como acontecimento, singularidade, pura intensão.
Como, para Vitor Hugo, a forma informe das ondas é inapreensível, o bom poeta será ondas e fará ondas. Segundo Georges Didi-Huberman, eis aí um modo novo de ser vago, de fazer uma poética da imanência: uma arte que não progride nem se atrasa. O novo como obra, na imanência de si mesmo, é como uma vaga cujo desenrolar Vitor Hugo sutilmente faz arrebentar na tela; não quer ser nada, senão destino, e a potência sutil de uma sublime ondulação.

* Excerto de um verbete que escrevi no primeiro semestre de 2009, intitulado "O que é o novo?"; publicado originalmente no n. 1, v.2 da Revista Captura Criptica: direito, política, atualidade, e disponível aqui, em PDF, na íntegra. Acho que vem a calhar às portas do ano novo... não? Então, sejamos intempestivos... - isso sempre vem a calhar, como o movimento do próprio tempo, suficientemente potente para impedir as totalizações demasiadamente cômodas da história.

As atuais teorias do direito (VII): considerações finais

23 dezembro, 2009


(ingenuidade...)

Entremeados nas diferenças internas aos planos de organização do direito, há que se reconhecer a ingênua precedência teórica de Gustavo Zagrebelsky ao postular a constituição de um direito dúctil, e de uma dogmática fluida, baseados na pluralidade material de valores combinados já não mais segundo a constituição, mas segundo uma “política constitucional”.  Não se trata apenas de reconhecer aí um direito flexível ou a decadência pura da lei. Mais que isso, a proposta de uma dogmática fluida – convenhamos, expressão de raro paroxismo –, é que encontramos, sob suas formas decaídas, menos sofisticadas, os objetos transcendentes que constituem a teoria contemporânea do direito; um discurso de miscibilidade dos objetos e, ao mesmo tempo, de modelagem, de fundamentações, de transcendências, das quais só nos é dado extrair cópias, semelhanças, imagens sem desvios; assim, a filosofia jurídica contemporânea não pode passar de um império das cópias, de um horizonte de representações sem realidade própria.
Norma fundamental, ordenamento jurídico, legitimação pela participação no processo decisório ou democrático-consensual de constituição social do direito, direito como conceito interpretativo, ou disciplina racional das regras de argumentação, ou ainda a decisão como momento em que forjamos Hércules, argumentamos racionalmente ou debelamos, schmittianamente, vez por todas, as ficções da legalidade;  como não seria este um inventário dos objetos que recentemente furaram o plano de imanência de uma filosofia do direito mais ou menos contemporânea?
A idéia de uma dogmática fluida está muito longe de nos apresentar a uma contradição em termos, ou a um paroxismo insuperável na teoria do direito. Pelo contrário, o que vemos é uma série de reforçaduras conceituais que tentam debater-se, confrontar-se umas contra as outras; mas esse confronto é o que mantém unidos seus mais capilares pontos de contato.
Não meramente o fato de que a maioria dos planos de organização ata-se em pontos de singularidade – a decisão, a exceção e a soberania perpassam toda decisão, em Schmitt; mas, principalmente, a verificação de que toda a teoria contemporânea do direito continua a fazer aquilo que Nietzsche renegava: destruir um altar para construir outro em seu lugar.
Uma espécie de platonismo separa o direito de sua realidade, tornando-o modular, ideal, evanescente e, nessa medida, irreal. No fundo, todos os planos de organização da teoria do direito contemporâneo, do direito como norma, processo, interpretação e decisão, terminam por enformar uma estrutura jurídica que, permeada pelo poder, e disposta a servir como dispositivo de captura, resume-se ora à norma disciplinar, ora a um direito de soberania, que de nada mais são capazes senão continuar a tornar eficaz a fictícia relação do direito com a vida.
A norma, o processo, a interpretação, a decisão. O inventário, a paulatina escritura do que recolhe todos os objetos transcendentes: a própria transcendência que retira o direito de qualquer possibilidade de ter uma realidade. De repente, um clarão: a miscibilidade, a fluidez, a harmonia dos contrários em figuras de assustadora semelhança. Nunca foi tão necessário uma filosofia da diferença na filosofia do direito. Nunca foi tão urgente confrontar o mesmo, suas cópias e as fabulações da transcendência com uma filosofia da imanência.

As atuais teorias do direito (VI): plano de organização do direito como decisão

21 dezembro, 2009



(A decisão: a cabeça de Hitler, a transcendência na imanência)


Eis para onde parece escorrer toda a teoria contemporânea do direito: fuga para o plano de organização do direito como decisão, de Carl Schmitt,  na indiscernibilidade entre fato e direito,  em um direito de soberania que reage contra a disciplina e, paradoxalmente, convive com ela em seu íntimo – e também nas regras de decisão, de racionalidade argumentativa, de procedimento e participação democráticas, nas regras e modos de arrefecimento de expectativas etc. A decisão de Schmitt pode não ser mais transcendental, nem mesmo um conceito teológico sacralizado,  como queria; mas o fato de a decisão schmittiana entranhar-se no real da soberania, na política, na vida dos homens sob a forma da ditadura ou da decisão sobre o Estado de exceção, é ainda forma de exercício de uma soberania que, encarnada na decisão de suspensão da ordem jurídica que mantém sua vigência e validade, volta a furar o plano de imanência, torna-se um objeto transcendente, põe-se como elemento organizador da ordem jurídica. Se pudermos operar uma redução brutal e irresponsável, poderemos afirmar que a mais marcante diferença entre o normativismo kelseniano e o decisionismo schmittiano consiste no conteúdo filosófico-político da norma fundamental: uma condição de cognoscibilidade transcendental, para Kelsen, e não uma norma, mas uma decisão concreta em sentido hegeliano (a um só tempo racional [ideal] e real), soberana, para Schmitt. A decisão sobre o Estado de exceção, a decisão soberana, não apenas suspende a ordem jurídica, mas, suspendendo-a, cria-se conceitualmente como um objeto transcendente: imanente ora ao sujeito que decide, ora ao instante da decisão – assim como o milagre (momento da intervenção direta) e o juízo de Deus são imanentes a algo = X; e X = “instante presente”, o momento fundador do tempo profanizado como uma figura degradada e imperfeita da eternidade divina de que falava Aristóteles. Portanto, a decisão schmmittiana nada tem de imanente, mas, como o próprio autor de Teologia Política reconhece ao afirmar que todos os conceitos de Teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados, a decisão supõe que Deus não possa abandonar de todo o tempo histórico.

As atuais teorias do direito (V): plano de organização do direito como interpretação

19 dezembro, 2009




(Dworkin e Alexy: Bush também tentava permanecer sob o guarda-sol do juízo)


No plano do direito como interpretação, tem-se como autores paradigmáticos Ronald Dworkin e Robert Alexy. Dworkin é autor de teorias muito pueris, e de fundos teóricos muito simples, que tenta fazer entrar em choque com os antecessores do positivismo – como se, de fato, combatessem por qualquer coisa muito diversa.
Já no primeiro capítulo de Law’s Empire, em que se coloca a tarefa de responder “What is the law?”, Dworkin se questiona sobre a relevância do tema e, sem sequer ruborizar, responde: “It matters how judges decide cases”.  Admitindo que o direito se torna aquilo que o juiz diz que ele é,  não é difícil notar que a decisão se torna transparente à teoria, à interpretação e à moral, mesmo entre os pós-positivistas. A partir de então, tudo – normas, princípios, regras, fundamentos e diretrizes políticas,  axiologia –, tudo será consagrado em oferenda a um semi-deus: Hércules, juiz ideal, modelo de magistrado. Pobres gregos; ignoravam a que a força de suas mitologias iria servir entre os modernos. Sob o manto de uma pretensão à criatividade, o que faz Hércules? Auxilia o Congresso a desenvolver, do modo que crê ser melhor, o sistema legal,  tornando congruente a decisão com a melhor interpretação do processo legislativo, com o histórico legislativo, que não o vincula, como estende a lei sobre a sua vida – não apenas a lei no momento originário, mas a lei antes e depois da lei. Lei como uma sucessão de momentos identificada, portanto, com a vida da lei. O direito, conclui Dworkin, é um conceito interpretativo.  Uma atitude construtiva, política, auto-reflexiva.
Alexy, por sua vez, ocupa-se em estabelecer estratégias e enunciar princípios para uma adotar decisão racionalmente orientada. Tomando o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático, segue-se toda uma normalização, sob a quase-delicada alcunha de “regras e formas do discurso”.  Discurso amarrado ao racional, à lógica, ao contínuo argumentativo, que parte das regras básicas de não-contradição, de crença afirmativa, de univocidade semântica, de homogeneidade dos predicados em relação aos objetos, homogeneidade também dos julgamentos de valores e obrigações, dentre outras. 
Com Alexy, e suas univocidades homogêneas – ou sua transparência discursiva –, ou com Dworkin e sua definição político-moral do direito como um conceito interpretativo, seja ao lado da argumentação, seja ao lado da construção da norma, tudo parece resumir-se à afirmação de Dworkin: “la norma no existe antes de que el caso haya sido decidido; el tribunal cita principios que justifican la adopción de una norma nueva”. Eis o que abre o guarda-sol do juízo e faz a passagem móvel, e indeterminada, entre o plano do direito como norma (positivismo, pós-positivismo) e o plano de organização do direito como decisão.


As atuais teorias do direito (IV): plano de organização do direito como processo

17 dezembro, 2009


(Hitler interroga o "princípio D": "Vocês é que estão dizendo... é de consenso?")


No plano do direito como processo, um primeiro ponto de estranha intimidade entre Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. A ambos acorre a perspectiva do jurídico inextrincavelmente relacionado à sociedade. Essa relação contingencial é admitida por Luhmann ao referir que o propósito do direito é possibilitar a integração do corpus social.  Habermas posiciona o direito como um medium que, para ser utilizado em favor da constituição do regramento das relações intersubjetivas, deve ser concebido com base no consenso forjado em um espaço comunicacional de formação racional da vontade política. 
Uma segunda relação entre direito e sociedade diz respeito à perspectiva segundo a qual os autores trabalham com o conceito de ordenamento jurídico e com a respectiva idéia de legitimidade de suas normas. Para Luhmann, o ordenamento representa uma espécie de compromisso com maiores possibilidades de seleção ou decisão racional.  A legitimidade do direito é, então, alcançada mediante a participação de partes no processo, cujo desfecho deve sugerir uma das duas possíveis conclusões: a) ou a decisão alcançada satisfaz o ator social; b) ou o ator social, por haver participado do processo decisório, não deve furtar-se a assimilar o desapontamento de suas expectativas, convencendo-se de que a expectativa de seu parceiro possuía feição normativa – e não poderia, por isso, ser frustrada, posto que se sustenta contrafaticamente –, ao passo que a sua expectativa, insustentável contrafaticamente, possui acento cognitivo. Em Habermas, o ordenamento é trabalhado a partir diferenciação entre validade social do direito – que tem a ver com a eficácia atualizada das normas jurídicas – e a legitimidade do direito que, construída pela participação no processo comunicativo, é capaz de fundamentar a aceitabilidade racional das normas consensuadas.
Em síntese, o ordenamento jurídico representa, tanto em Habermas quanto em Luhmann, uma construção social, um processo. Contudo, ambos os autores tencionam retratar, também, a influência inversa; isto é, a noção de que não apenas a sociedade constrói o direito, mas o direito constrói, também, a sociedade. Luhmann clarifica essa influência ao afirmar que os processos de institucionalização, generalização congruente, estruturação e acomodação de expectativas, bem como o sistema jurídico de arrefecimento dos desapontamentos ocorridos, possibilitam que o direito promova a integração social, constituindo, assim, as possibilidades de interação entre atores sociais.  Habermas, de modo semelhante, enuncia que o processo comunicativo de elaboração de normas baseadas no consenso, constroem, politicamente, as condições de vida socialmente partilhadas.
Um terceiro e último ponto constitui o laço que ata as duas pontas dessas proposições: as configurações de processo em Luhmann e Habermas guardam uma tensão circular entre seus elementos. Luhmann afirma que o processo visa a sedimentar o sentido e a acomodar expectativas, bem como a amortecer os eventuais e inescapáveis desapontamentos.  Ainda, gera a integração da sociedade que, crescente em complexidade e severamente contingenciada, vê-se adstrita à consecução de processamentos de seleção de expectativas, de estruturação por normas, de alcance de mais ricas possibilidades de decisão racional gravando as conquistas por meio da institucionalização e fixação do sentido que reacomoda as expectativas, fazendo recair, uma vez mais, no aumento da complexidade e, por extensão, na cadeia inicial do processo. Habermas, por seu turno, concebe que o direito deva ser legitimado não por sua validade social, mas por meio do político, o qual se fundamenta no princípio comunicativo, com raízes infiltradas na possibilidade profanizada, pós-metafísica da razão; tal princípio, ao possibilitar o processamento comunicacional e a participação da totalidade do corpus social na discussão pública para o atingimento do consenso, funda a legitimidade das normas extraídas do consenso na inescapabilidade de tal participação no discurso, partilhado desde a assunção de pressupostos comunicativos que garantem a racionalidade do procedimento.  Assim, para poder utilizar o medium do direito para regrar seus modos de vida, a sociedade deve elaborar, com base no princípio do discurso, o processo de formação racional do consenso para extrair dele tais regras. Dois processos circulares que permitem “novidades”, desde que concebidas nos limites de seus códigos procedimentais – mas nunca o novo.

As atuais teorias do direito (III): plano de organização do direito como norma

16 dezembro, 2009




Contemporaneamente, quatro são os planos de organização divisáveis na teoria do direito; quatro planos que, embora a relutância mútua sempre renovada, embora o disfarce na forçada oposição, não deixam de soprar no mesmo sentido do vento. São eles os planos do direito como norma, como processo, como interpretação e como decisão.
Bem percebidos, tanto o positivismo clássico de Kelsen  e Bobbio,  quando o pós-positivismo ou o neoconstitucionalismo de Carbonell,  Pozzolo e Ramos Duarte,  Zagrebelsky,  Dworkin,  Alexy  etc., terminam por possuir em comum a constituição do direito como norma. Ambas as matrizes, embora trabalhem de forma diversa esse território teórico, ainda assim não deixam de partilhar o mesmo espaço.
Teoricamente, há uma relativa novidade no esquema pós-positivista, consistente na transfiguração de seu objeto, segundo a qual a norma perde sua onticidade na exata medida em que a ganha a interpretação como forma de construção da norma. Vale dizer, se os paleo-positivistas ontologizaram a norma, como um dado imediato extraído do ordenamento jurídico, os pós-positivistas continuam a ontologizá-la, se bem que à sua maneira; atualmente, o que ganha existência ontológica, nas sendas do pós-positivismo, são também as normas – não mais como um dado imediato do ordenamento positivo, mas enquanto produtos extraíveis da miscigenação hermenêutica de normas (princípios e regras), valores, diretrizes políticas e discursos racionais de justificação, que, a um só tempo, lhes fornecem o substrato normativo, a sua obrigatoriedade dotada de pretensão de legitimidade e a ontologia da norma singularizada.
Dada a reconhecida precedência da norma singular, concreta, ganha vital importância o terreno decisório, pois nenhuma norma, antes da justificação racional sobre sua imperatividade, deve ser obedecida a priori, como uma obrigação derivada de um dado imediato da consciência, como teria propugnado o neokantismo de Kelsen.  Ao reduzir o direito à decisão singular, ou melhor, ao fazer da decisão o território privilegiado da normatividade do direito, essa renovada cartografia do direito que devém norma abre espaços para possibilitar recair, igualmente, no perigo do que José Eduardo Faria denominou por direito flexível, informalizado, baseado em trocas, ajustes negociados etc.


Direitos Fundamentais, Economia e Estado, livro de Julio César Marcellino Júnior, Juliano Keller do Valle e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

15 dezembro, 2009




[Lançamento] - Faço uma pequena – e absolutamente necessária – intersecção em nossos posts sobre a teoria contemporânea do direito, para noticiar o lançamento da mais nova obra da lavra dos Professores Julio César Marcellino JúniorJuliano Keller do Valle e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino, intitulada "Direitos Fundamentais, Economia e Estado: reflexões em tempos de crise". O lançamento se dará amanhã, 16.12, no mesmo local do lançamento do livro  Prof. Alexandre Morais da Rosa, em co-autoria com o Prof. Thiago Fabres de Carvalho. Falei sobre o livro deles aqui. Lembro que o Prof. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino edita o excelente blog jurídico A utopia do direito, que nos dera a honra de ser um dos primeiros blogs parceiros do "A navalha de Dalí", junto com o Prof. Alexandre.
Embora não possa estar presente em face de compromissos aqui em Curitiba, divulgo aos leitores, colegas e amigos, para que possam prestigiar o lançamento, e aproveito para cumprimentar os autores por mais essa fabulosa realização, saída pela excelente Conceito Editorial, situada na bela cidade de Florianópolis.


As atuais teorias do direito (II): planos de organização e transcendências

14 dezembro, 2009


(Jacob's Ladder, de William Blake - "como assim, levantados do chão?")


Persistem pontos e singularidades comuns nos espaços teóricos compartilhados e, nessa medida, estriados pelas teorias contemporâneas do direito. Variam, apenas, os modos de estriar, os simulados desvios pelos quais se continua a constituir um objeto transcendente por intermédio do qual o plano irá ligar-se a um dativo, apelar a um além, a um elemento alheio que, colocando-se sobre ele, vem furar o plano. Esse é o momento em que, como escrevem Deleuze e Guattari, “Em vez de um plano constituir o Uno-Todo, a imanência está ‘no’ Uno, de tal modo que um outro Uno, desta vez transcendente, se superpõe àquele no qual a imanência se estende ou ao qual ela se atribui: sempre um Uno para além do Uno, será a fórmula dos neoplatônicos”.
            Deleuze demonstrará, aliás, que quase toda a história da filosofia – de Platão à filosofia cristã, e de Descartes, Kant, Husserl a Lévinas ou Derrida – baseou-se em nossa reiterada desatenção à instauração do plano no momento em que se cria um conceito, em nossa falta de cuidado ao fazer do conceito um universal transcendente, e na inescapável falta de sensibilidade em perceber que a filosofia é uma atividade de criação.
            A filosofia do direito mais ordinária, e mais amplamente assimilada, não escapa à circunstância de a imanência ser constituída como imanência a qualquer coisa, a um conceito, a um Uno que se tornou universal quando deveria encontrar-se no mesmo plano do Uno-Todo que lhe sustenta. E, novamente, teremos o “imanente a algo” que, em última análise, é o que constitui e consagra a transcendência. Spinoza já havia observado esse hábito que os homens têm de formar idéias universais sobre as coisas, tanto naturais quanto artificiais, “e acreditam que a natureza (que pensam nada fazer senão em função de algum fim) observa essas idéias e as estabelece para si própria como modelos”. Os mesmos homens que, segundo Spinoza, ao perceberem que a natureza não se rege pelos modelos que elaboraram, dirão que a natureza errou, fracassou, que tornou imperfeita a coisa. Os mesmos homens e os mesmos pensamentos: as representações, o império das cópias. Formas de tornar o plano de imanência, que é um corte do caos, um atributo do conceito, fazendo confundir e mal-entender ambos – conceito e plano.
Para além de um problema meramente teórico, para Guattari e Deleuze a imanência é perigosa, “engole os sábios e os deuses”. Imanente apenas a si mesma, tudo quanto há insere-se no Uno-Todo, e nada remanesce a ponto de continuar sendo possível dizer que a imanência permanece imanente a “algo”, como o objeto que reintroduziria a transcendência.
            Assim, nos planos de organização do direito, devemos entrever como se estria o plano comum teórico no direito como norma, processo, interpretação e decisão, que enformam a teoria do direito contemporânea, marcada, justamente, pela convivência dessa aparente multiplicidade que, como veremos, nada mais é senão a cópia, a representação de tudo quanto a filosofia transcendente já pôde inventar. Por ora, trata-se de fazer não uma história contemporânea e, por isso, relativamente paradoxal, mas de traçar um breve excursus teórico que nos possibilite descobrir, por debaixo dos estriamentos, isso de que falamos: uma escatologia do transcendente que continua a reger os usos canônicos do direito.


As atuais teorias do direito (I): uma introdução

13 dezembro, 2009




A partir de hoje, de forma mais espaçada, trabalharemos muito sumariamente, e com uma doce irresponsabilidade, uma pequena série de posts relacionados à tentativa de demonstrar como se pode entrever uma atual cartografia das atuais teorias contemporâneas do direito como planos de organização produtores de transcendências. Não se trata de invalidá-las, pura e simplesmente, mas de esboçar, e recuperar, um gesto filosófico que Deleuze e Guattari diziam ser “o gesto supremo da filosofia” – mostrar que, apesar das ilusões da transcendência, dos universais, do eterno e da discursividade, o plano de imanência sempre esteve ali.
“É possível pensar sem transcendências?” – já me colocaram essa questão. Uma resposta muito precária a ela é: a questão é um falso problema. O que, efetivamente, especifica o gesto filosófico, a criação-descriação de conceitos, é a completa impossibilidade de se pensar (mesmo com transcendências) sem construir, contemporaneamente aos conceitos, um plano de imanência no qual o conceito se autopõe. Assim, temos uma forma de estriar um plano de imanência tanto em Nietzsche como em Heidegger, em Spinoza como em Kant – embora os primeiros lutem bravamente contra as transcendências que possam emergir de seus planos. Eis a prova de que é na imanência que nasce o pensamento – e a imanência não se restringe ao que é puramente atual, mas o engloba – por isso não é uma fuga do real, mas uma forma de cavar trincheiras e de constituir linhas de fuga, ou de ruptura – palavra que, subtraída pela filosofia deleuziana da literatura de F. S. Fitzgerald (The crack-up), em meio a reflexões sobre o álcool e a esquizofrenia, me soa menos confortável e mais desafiadora. Após essa introdução, que deveria ter sido breve, no próximo post, iremos diretamente ao quadro de inteligibilidade, à ideia geral, dessa cartografia que proponho. Os amigos e leitores que quiserem acompanhá-la passo-a-passo, estão convidados (inclusive a discutir nos comentários), e são muito bem-vindos.


Algo grande demais para si: Deleuze e o álcool, por Daniel Lins

11 dezembro, 2009



[Imagens] - Dentre os comentários sobre a obra de Deleuze, o tema que trata de suas relações com o álcool é raramente abordado, para não dizer inexistente. Ora, ao longo de sua obra, Deleuze fala diversas vezes a respeito do álcool. Durante nossa discussão, dialogaremos, sobremodo, com três textos: a 22ª série da Lógica do sentido, o 2º capítulo dos Diálogos, e “B como Bebida”, do Abecedário. (Fonte: cpfl).
[L'Abécédaire Gilles Deleuze avec Claire Parnet]CP: (...) quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a vida. Aí há a questão dos escritores de que se gosta.  GD: Sim, é a vida.  CP: É a vida?  GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... um dos que mais admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para eles.
*Deleuze nunca incentivou, mesmo no maio de 1968, o uso das drogas e do álcool - embora muitos o tenham acusado disso; também não des-incentivava, pois essa questão (usar ou não usar) nunca foi um problema de sua filosofia.Em Mil Platôs ("Como criar para si um corpo sem órgãos"), Deleuze e Guattari mostram como é possível aproveitar-se dos procedimentos do alcoolátra, do esquizofrênico, do drogado, mesmo a partir da literatura, para cerzir um spatium e açoitar as intensidades; com isso, o corpo se abria  a novos devires, a experiências diferenciais. Contudo, o encontro propriamente fisiológico ou empírico do corpo com a substância química não seria realmente necessário. No mesmo texto, de Mil Platôs, Deleuze e Guattari escrevem que seria possível drogar-se sem droga e embriagar-se com água, como na experiência literária de Henry Miller. De toda forma, tudo sempre submetido a um princípio-chave em sua obra, que é o princípio da prudência: cuidado para não espantar os devires, atenção para não se dar a uma queda demente ou suicida. Aí está: vigiar, em nós, o fascista e o demente - submeter o desejo ao crivo seletivo do plano de imanência e à potência (virtu) virtuosa da prudência. Nunca se tratou de um código de normas de conduta - mas da delicadeza (perigosa, é certo) dos encontros intensos, das experiências.

Desaprender como auto-invenção: Rubem Alves e Félix Guattari

10 dezembro, 2009




Há alguns anos vim a saber quem era, exatamente, Rubem Alves. Em meu imaginário, o que era "apenas" um educador - imagem longínqua de alguém que tem algo a dizer -, virou, como diria Barthes, um corpo. Corpo que dizia à jornalista que o entrevistava (apaixonadamente): "sabe quando a criança pega uma tangerina, tira a casca e enfia o dedo no meio, atravessando os gomos? Isso é um ato de amor - a criança querendo fazer amor com o mundo". Isso fez também a jornalista ficar um pouco apaixonada por ele - e era possível perceber que sim...
Não estarmos prontos, não nascermos prontos, é o ponto de partida para as possibilidades de nossa própria invenção. Manoel de Barros, poeta cuiabano, chamado "poeta das coisas chãs" - porque canta a terra, os pequenos seres que a habitam (inclusive as lesmas e, segundo ele mesmo, "a eroticidade de suas viscosidades"), já escrevera que "Tudo o que não invento é falso". Embora, pessoalmente, não veja isso como absoluto, isso me faz ter uma idéia das possibilidades de cuidar de mim, de me auto-educar para o amor e o prazer, ou para o poder e o medo. Isso não é tão individualista como parece: pois ao inventar minha verdade (como verdades possíveis e precárias, porque modificáveis), invento-me a mim próprio e ao mundo que nos cerca. Percebo que sou capaz de diferença, de desvio, que são as possibilidades do criativo. Manoel de Barros ainda escreveu certa vez que "desaprender oito horas por dia ensina os princípios". Às vezes isso é muito necessário: perder o que se aprende para poder perder-se naquilo que se aprende como invenção de si próprio. Uma saída possível da educação tradicional é, como diria F. Guattari, criar determinados "focos de resistência subjetiva"- individual ou coletivamente, já que o próprio Guattari diz que "somos todos grupelhos"; nossa subjetividade não faz sentido por si só, desvinculada do mundo e dos outros, e uma grande possibilidade de resistirmos está em nos associarmos com outros resistentes. O professor, em sala e fora dela, parece ter a função de mediar a criação de um grupelho - seja pelo prazer, seja pelo medo, e de possibilitar aos alunos a visão responsável das possibilidades de sua resistência. As coisas que ali (em sala) são ditas, são tomadas de modo diverso por cada um; assim também ocorre com o que é ensinado, ou quando lemos um texto. Não podemos ter a ilusão de que se lê "o texto" ou "o autor" - é o texto que nos lê (Barthes). Tudo que é possível falar sobre o texto é mediado por nossa subjetividade - o que explica porque às vezes escrevemos uma coisa (achando que estejamos a dizer uma coisa tal), e quando nosso texto é lido, já se modificou completamente: já não é nosso, mas do leitor que, lendo o texto, faz o texto ler a si mesmo; nossa obra não é nossa, mas obra de um outro, obra da dispersão da subjetividade de um outro. Assim, é no ensino, na leitura, na ciência - ao menos, é como me parece que seja. Claro que alguma objetividade é possível, sob pena de qualquer conversa tornar-se imponderável, mas não devemos esquecer a dimensão de subjetividade aberta, incompleta, por-fazer - isto é, "subjetividade de um devir-sujeito", inacabado: e daí sua possibilidade de autoconstituição, e sua responsabilidade de saber que o que faz consigo mesmo é o mesmo que faz para o mundo e as pessoas que o cercam, em alguma medida. Constituímos o mundo à nossa maneira - ou melhor: nossa capacidade de influir no mundo, de modificá-lo, sustenta-se na possibilidade de uma educação que nos faça aprender a auto-educação como expressão de um desvio, de uma diferença, e da existência de um território existencial (Deleuze e Guattari) que criamos para nós mesmos e que, ao contrário de nos isolar do mundo, é capaz de nos fazer entrar em contacto com ele, e nos fazer perder o chão sob os pés - isso é a subjetividade desterritorializante, capaz de nos fazer visitar outros territórios existenciais. Nada disso é possível sem percerber que não somos, como um mero estado de sujeito; mas, processualmente, vamos sendo, como expressão de um devir-sujeito que não pode ser desprezado em suas possibilidades (auto-)educativas.




Processo penal eficiente e ética da vingança: de Alexandre Morais da Rosa e Thiago Fabres de Carvalho

09 dezembro, 2009



[Lançamento] - Dia 16 de dezembro de 2009, às 19h30min, no Absoluto Chopp Bar, em Florianópolis, terá lugar o lançamento do mais novo livro de Alexandre Morais da Rosa, Juiz de Direito, Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Direito da Univali, e recém-aprovado em concurso para Professor da Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, e de Thiago Fabres de Carvalho, Professor do Curso de Graduação em Direito do CESUSC, mestre e doutorando em Direito na Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A obra tem por título "Processo penal eficiente e ética da vingança: em busca de uma criminologia da não violência." Embora não possa estar presente (em face de compromissos em Curitiba), divulgo aos demais colegas e amigos, para que possam prestigiar o evento, e aproveito para cumprimentar os autores por mais esse livro que, tirando pelos escritos do Prof. Alexandre, nada deve deixar a dever aos trabalhos anteriores em comprometimento com uma postura crítica e inovadora no seio das ciências criminais.


Sobre o conceito de hecceidade

08 dezembro, 2009



A hecceidade é um modo de individuação muito diverso daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Tudo nela é relação de movimento e de repouso entre moléculas e partículas, poder de afetar e de ser afetado. Mesmo quando os tempos são iguais, a individuação de uma vida não é a mesma que a individuação do sujeito que a suporta. Não se trata do mesmo plano: plano de consistência ou de composição das hecceidades, que só conhece velocidades e afetos, e o plano inteiramente outro das formas, das substâncias e dos sujeitos. Não é o mesmo tempo, também: Aion estóico, tempo indefinido do acontecimento, linha flutuante que só conhece velocidades e, ao mesmo tempo, não pára de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-demais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar. Por isso Deleuze perguntava: “que se passou?”
Não passamos de uma hecceidade: latitudes e longitudes, conjuntos de velocidades e lentidões entre partículas não formadas, conjunto de afetos não subjetivados. Tem-se a individuação de um dia, de uma estação, de um ano, de uma vida, de um vento, de uma neblina, de um enxame, de uma matilha – independentemente da duração e da regularidade. Aqui nasce toda a possibilidade micropolítica de um devir, de uma política do impessoal; como Deleuze referia em seu último texto, homo tantum.
A hecceidade não é apenas um fundo em que se situariam os sujeitos, mas é “todo o agenciamento em seu conjunto individuado que é uma hecceidade; é ele que se define por uma latitude e uma longitude, por velocidades e afectos, independentemente das formas e dos sujeitos que pertencem tão somente a outro plano.”, escrevem Deleuze e Guattari.
As relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas dimensões de mutiplicidades. O plano de consistência só contém hecceidades segundo linhas que se entrecruzam. Uma hecceidade não tem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma - intermezzo.

Tempo e loucura: Peter Pál Pelbart

07 dezembro, 2009



[Imagens] - Contra uma concepção de tempo “humana, demasiado humana”, linear, homogênea, cumulativa, apaziguada, a filosofia de Deleuze evoca um tempo plural, paradoxal, vertiginoso, intempestivo. Com efeito, a partir de suas fontes na filosofia, na literatura, até no cinema, Deleuze aponta para um “enlouquecimento do tempo” que tangencia, curiosamente, o tempo da loucura, tal como várias abordagens clínicas o descrevem. Essa intersecção não é acidental. Em todo caso, ela ajudará a rastrear as implicações políticas, subjetivas e estéticas da concepção temporal que Deleuze postulou. (Fonte: cpfl).

Peter Pál Pelbart é doutor em filosofia e professor na PUC-SP. É tradutor e estudioso da obra de Gilles Deleuze (traduziu para o português "Conversações", "Crítica e Clínica" e parte de "Mil Platôs"). Escreveu sobre a concepção de tempo em Deleuze ("O Tempo Não-reconciliado", Perspectiva, 1998), sobre a relação entre filosofia e loucura ("Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão", Brasiliense, 1989, e "A Nau do Tempo-rei", Imago, 1993) e publicou, mais recentemente, "A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea", Iluminuras, 2000.

Da série “micro-fascismos”: sobre Prates e a "verdadeira democracia"

06 dezembro, 2009




Na foto, o falecido general João Figueiredo [segundo Prates, "que Deus o tenha"] à mesa com Paulo Maluf


Luiz Carlos Prates, comentarista da RBS, filiada da rede Globo em Santa Catarina, teceu comentários sobre sua juventude, vivida no período da ditadura, e o atual momento (escandaloso, sem dúvida – basta ver que há notas sobre isso em jornais internacionais dos mais variados, do Times ao Le monde) da democracia brasileira. Ao final de seu aparte, Prates (cujo nome é bizarramente semelhante ao de Luiz Carlos Prestes, da esquerda revolucionária cujos influxos atingem a iníqua, para Prates, Novembrada) conclui afirmando que o general Figueiredo teria nos ensinado o caminho da "luta, da verdadeira e legítima democracia", como destacado aqui.

*

 O importante não é Prates, nem "a verdade democrática" que seu comentário deseja extrair da ditadura - ou da, segundo ele, fabulosa e reta vida que pode ser atribuída a um ditador, como João Figueiredo, que morreu pobre -, mas, mais precisamente – e eis uma grade de análise possível -, tomando a enunciação de Prates como um acontecimento, o que se pode pensar a partir dele? A pergunta que me ronda, tendo assistido ao vídeo, é a seguinte: "a democracia não é, também, uma forma moral, tanto quanto a ditadura?"

Discutir a superioridade de uma forma moral sobre outra não vem ao caso. Se algo de útil se pode tirar desse discurso de Prates - para muito além de reações contra ele, que não conduzem senão a discussões infantis - "ditadura!"; "não, eu prefiro democracia!"; "o meu é melhor!", “não! O meu é que é!”, "me devolve meu brinquedo!" etc. -, é perguntar-se se ele não é um indício deveras preciso de uma visibilidade que aos poucos vem se dando à luz (o que, aliás, me parece um tema indiretamente schmittiano, e, mais diretamente, agambeniano): haveria um ponto em que a ditadura e a democracia poderiam se tocar, se irmanar, se tornarem indistinguíveis? – talvez no seio confuso da moral vigente? A fala de Prates, para além de qualquer juízo, deixa isso claro, apesar da idiotia da opção: e optar, num caso desses, é sinal de idiotia, por não reconhecer que as opções em jogo estão conectadas desde sua intersecção indiferenciada. Há uma solidariedade íntima entre democracia e ditadura, e não apenas como formas de exercício de poder nas sociedades capitalísticas, pós-democráticas, espetaculares; essa solidariedade obtusa também está na forma moral que a democracia toma na boca dos democratas (o véu moral do progressismo medíocre), e na forma, igualmente moral, que a ditadura adquire na boca dos reacionários (o véu moral da eficiência administrativa, da paz armada, da liberdade sitiada pelos aparelhos de segurança que, ao contrário do que se pensa, não desapareceram).

Enquanto trabalharmos com axiomas – e lembremos o que Deleuze e Guattari diziam, sobre o capitalismo axiomatizar e reterritorializar no corpo pleno do capital os fluxos liberalizados do desejo –, a única discussão possível, tão cara aos habermasianos, persistirá nisso: “devolve meu brinquedo!”; “não!”; “manhêêê!” - uma discussão infantil; além, é evidente, de continuarmos a dar audiência e fazer coro à idiotia generalizada que opera, nos meios de comunicação de massa, nossas subjeições e deposições subjetivas infinitesimais.


A alegria e o trágico em Nietzsche: Roberto Machado

05 dezembro, 2009



[Imagens] - Nessa palestra, o Prof. Roberto Machado, privilegiando os temas do niilismo e do eterno retorno, pretende mostrar que um dos principais objetivos de Nietzsche ao criar uma filosofia trágica é defender uma alegria incondicional com a vida, uma aprovação jubilatória da existência. São muitos os textos de Nietzsche que vão neste sentido. Será privilegiado, nesta exposição, o lugar onde o tema da alegria é apresentado com maior relevância: o livro que, para ser condizente com a idéia de trágico e a tentativa de escapar da racionalidade conceitual da filosofia, utiliza uma forma de expressão artística, ou melhor, poético-dramática, que permite considerá-lo o ápice da filosofia de Nietzsche. (Fonte: cfpl cultura)

ROBERTO MACHADO é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e autor de diversos livros, entre eles: Foucault, a filosofia e a literatura; Foucault, a ciência e o saber; Zaratustra, tragédia nietzschiana; e Nietzsche e a polêmica sobre "O nascimento da tragédia" (organização e introdução), todos publicados por Jorge Zahar Editor. Para essa editora, dirige ainda a coleção Estéticas.


Devires e subjetivação: sobre Félix Guattari lido por Luis Alberto Warat

04 dezembro, 2009

  



Prezado Prof. Luis Alberto Warat,

Alguns pequenos agenciamentos para multiplicar algumas ideias com seu “Hablar de Guattari VII”:

1. Em Guattari, como em Deleuze, devir não é identidade - nem processo de produção ou fragmentação de identidades; devir não é mecanismo de territorialização de virtualidades quaisquer sob uma atual e transcendente forma-sujeito, mas um processo marcado por uma indecidibilidade virtual no seio da própria subjetivação – uma espécie de experimentação potente de múltiplas intensidades (por isso, Deleuze e Guattari falavam em devires-moleculares, inorgânicos, mulher ou homossexual); eles explicavam que o devir só é possível quando se é minoritário: não há devires-majoritários, devires-identidade, devires-sujeito-fixo. Elementos majoritários são os organizados por um aparelho de captura ou de estado; não podem devir porque não são capazes daquela “marginalização positiva” de que fala seu fragmento. Não há devir-homem-branco-europeu-cristão, mas organização, estratificação e usurpação do corpo sem órgãos criando sobre ele um estado subjetivo, uma identidade imóvel. Eis o que Deleuze lembrava, em Mil Platôs, como o juízo-de-Deus: a organização demasiado fixa dos órgãos sobre o corpo sem órgãos.

2.  Como expressar, do devir, uma intuição simples? Aqui muitos caminhos se cruzam: desde a inescapabilidade do devir como o movimento do eterno retorno do diferente, em uma evocação de Nietzsche, até a interpenetração e a coexistência intensa entre campos da memória, do atual e do futuro (que Nietzsche chama de “o intempestivo”, Foucault chamava de “o atual, o interessante”), em que Deleuze termina por estender seu bergsonismo – a grande passagem das três sínteses do tempo, em Diferença e Repetição, me parece um texto exemplar, nesse sentido.
Parece que recaímos em um problema dos mais interessantes da filosofia: como exprimir o devir? A linguagem é, também, um eficaz aparelho de captura; ela também estratifica, faz estado; exprimir o devir passa por uma tentativa (poética, de imagens móveis, talvez) de introduzir o devir, com toda a complexidade bergsoniana dos lençóis do tempo, no interior de uma experiência que é a própria linguagem filosófica. Por isso, não há explicação simples em “O que é a filosofia?” para a definição da filosofia como “criar conceitos”. Deleuze e Guatarri dizem que o gesto supremo da filosofia é mostrar que o plano de imanência, no qual o conceito se “auto-põe” esteve, desde sempre, ali. Mostrar que pensar, criar conceitos, só se faz supondo o plano de imanência – corte e crivo do caos, que debela o caos ensaiando conservar algo de suas velocidades absolutas.

3. Eis aqui um agenciamento estranho: pensar foucaultianamente os produtos dos devires; não como identidades ou reterritorializações em formas fixas de subjetividade (a forma-homem, o “Ego”), mas como experiências de um processo de subjetivação (Deleuze preferia falar em “individuação”, ou “hecceidade”) que não podem dispensar uma dessubjetivação imanente e positiva – algo próximo do que você escreve: “entrar em aliança”, em ressonância, com a diferença ontológica, (isto é, deixar as intensidades passarem entre os corpos numa dissolução das subjetividades identitárias para lançá-las em um devir-qualquer, em conexão com o movimento diferenciador do próprio ser). Devir é um jorro incessante de criação que não tem na origem nem um vazio constitutivo, nem uma experiência do negativo, tampouco um Sujeito a dirigir-lhe a atualização; o devir é o movimento de criação do próprio real, é processo de produção do real. Devires-minoritários, como um movimento fundamental de micropolíticas do desejo, são o que nos conecta com a diferença que, também em nós - no campo subjetivo intensivo do qual nosso “eu” é tributário-, lança-nos em um devir; parece claro que o desejo opera aí, no lançar-nos a esse movimento indomável, selvagem, operando como uma causa imanente: pois o desejo, já diziam Deleuze e Guattari em “Kafka: para uma literatura menor”, é a imanência; e a imanência é, também, a justiça.

Abraços,

Murilo Duarte Costa Corrêa