Na colônia penal: direito e desativação

31 janeiro, 2010




Quando o oficial da Colônia Penal vai até o aparelho e precisa as pequenas agulhas para escreverem em seu próprio corpo a sentença que ele mesmo (e talvez tenha sido o único!) reconhece na escrita retorcida, “sê justo.”, o que se passa? Algo que é da ordem do devir e da desativação; da ordem da inscrição do movimento do devir, da justiça, do desejo, da imanência, no interior do aparelho judiciário, no qual não se conhece a lei ou a sentença, mas se sofre a pena e o suplício no próprio corpo, e se conhece a condenação e a culpa interrogando as próprias chagas; a justiça, “sê justo.”, desativa o sistema do juízo, como prova de que, no âmago de toda decisão, está um interior indeterminado, mas diferenciante, que é o próprio devir: a indecidibilidade, a paixão desativadora, mas criadora e positiva, do “I would prefer not to” de Bartleby. Ela implica, em si mesma, uma outra relação com a morte, um outro encontro com ela – a morte não mais como a obra de um aparelho judiciário, mas o encontro venturoso com a morte no devir: só assim a vida pode escapar a ela.


Para quem ainda procura "o que resta de Auschwitz"

29 janeiro, 2010



Aparece uma vala comum na Colômbia com 2 mil cadáveres

Os corpos sem identificação foram depositados pelo Exército a partir de 2005 - (26/01/2010) - Do jornal espanhol Público, reportagem de Antonio Albiñana, Bogotá.

No pequeno povoado de Macarena, região de Meta, 200 quilômetros ao sul de Bogotá, uma das zonas mais quentes do conflito colombiano, está sendo descoberta a maior vala comum da história recente da América Latina, com uma cifra de cadáveres enterrados sem identificação, que poderia chegar a 2.000 segundo diversas fontes e os próprios residentes. Desde 2005 o Exército, cujas forças de elite estão baseadas nos arredores, depositou atrás do cemitério local centenas de cadáveres com a ordem para que fossem enterrados sem nome.
Trata-se do maior túmulo de vítimas de um conflito de que se tem notícia no continente. Seria preciso ir ao Holocausto nazista ou à barbárie de Pol Pot no Camboja para encontrar algo desta dimensão.
O jurista Jairo Ramírez é o secretário do Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos na Colômbia e acompanhou uma delegação de parlamentares ingleses ao lugar faz algumas semanas, quando começou a se descobrir a magnitude da cova de Macarena. "O que vimos foi estarrecedor", declarou ao Público. "Infinidade de corpos e na superfície centenas de placas de madeira de cor branca com a inscrição NN e com datas desde 2005 até hoje".

Desaparecidos
Ramírez acrescenta: "O comandante do Exército nos disse que eram guerrilheiros, baixas em combate, mas as pessoas da região dizem que são líderes sociais, camponeses e defensores comunitários que desapareceram sem deixar rastro".

Enquanto a Promotoria anuncia investigações "a partir de março", depois das eleições legislativas e presidenciais, uma delegação parlamentar espanhola integrada por Jordi Pedret (PSOE), Inés Sabanés (IU), Francesc Canet (ERC), Joan-Josep Nuet (IC-EU), Carles Campuzano (CiU), Mikel Basabe (Aralar) e Marian Suárez (Eivissa pel Canví) chegou ontem à Colômbia para estudar o caso e fazer um informe para o Congresso e a Eurocâmara. Para investigar a situação da mulher como vítima e os sindicalistas (somente em 2009 foram assassinados 41), também vão trabalhar em outras regiões do país.

Mais de mil covas
O horror de Macarena trouxe de volta o debate sobre a existência de mais de mil covas comuns de cadáveres sem identificar na Colômbia. Até o final do ano passado, os legistas haviam contados cerca de 2.500 cadáveres, dos quais haviam conseguido identificar 600 para entregar os corpos a seus familiares.
A localização destes cemitérios clandestinos foi possível graças a declarações dos chefes de médio escalão dos paramilitares desmobilizados, anistiados pela controvertida Lei de Justiça e Paz que garante a eles pena simbólica em troca da confissão de seus crimes.
A últimas destas declarações foi de John Jairo Rentería, o Betún, que acaba de revelar à Promotoria e aos familiares das vítimas que ele e seus sequazes enterraram "mais ou menos 800 pessoas" na fazenda Villa Sandra, em Porto Asís, região de Putumayo. "Era preciso esquartejar as pessoas. Todas as Autodefesas [grupo paramilitar] tinham que aprender isso e muitas vezes se fazia com as pessoas vivas", confessou o chefe paramilitar ao promotor de Justiça e Paz.

A criação e o esquecimento: a partir de Carl Schmitt


(Como criar uma esponja de Menger-Spierpinski em quatro passos: esquecimento e multiplicidade)


Lembro-me de que em Schmitt há uma passagem um tanto estranha. No primeiro escrito sobre Teologia Política, de 1922, Schmitt, ao buscar reabilitar a decisão como ato fundador e conservador do direito, acaba por encontrar uma forma que não admite uma decisão:
  
“No significado autônomo da decisão, o sujeito da decisão tem uma importância autônoma ao lado de seu conteúdo. Para a realidade da vida jurídica, depende de quem decide. Ao lado da questão da exatidão substancial, coloca-se a questão da competência. Na contradição de sujeito e conteúdo da decisão, e no significado próprio do sujeito, se encontra o problema da forma jurídica. Ela não tem o vazio apriorístico da forma transcendental, pois ela surge, justamente, do aspecto juridicamente concreto. Ela também não é a forma da precisão concreta, pois esta tem um interesse finalista/teleológico impessoal, essencialmente pragmático. Enfim, ela também não é a forma da configuração estética, que não conhece uma decisão.(SCHMITT: 1922, p. 32-33)

A forma da configuração estética não conhece uma decisão. Como? Quando? Por quê?... Escuto ressonâncias em dois conceitos de Deleuze – porque é evidente que não se pode limitar essa forma de configuração estética à arte, da mesma forma que não se pode limitar as possibilidades da arte a uma forma de configuração estética – em devir-imperceptível e em criação, que nunca foi prerrogativa de um deus transcendente, mas obra de uma variação contínua no seio da natureza, como em Bergson ou em Spinoza. Nancy, por outro lado, teria algo a nos dizer quando fala em désoeuvrément, em inoperosidade, em comunidade, ou sociedade, sem-obra? E Agamben, ao tomar os conceitos de dispositivo e de desativação? Mas desativar um dispositivo, profanar um uso canônico, não são ainda algo da ordem de uma criação (em sentido deleuziano, embora cada um desses conceitos seja absolutamente irredutível ao outro)? Profanar, devolver ao livre uso dos homens, atribuir um novo uso... são questões em que entram em jogo a ruptura e o novo. Então, ficaria com esses dois conceitos, ambos procedimentais, ambos uma questão de velocidade: devir-imperceptível, no qual não há qualquer segredo, porque se devém todo mundo, e criação – que, segundo Nietzsche, não é somente o que se faz, mas o que se desfaz, aquilo que se pode destruir e aniquilar ativamente – afinal, a própria vida está imersa em toda essa crueldade. Essa crueldade destruidora, destituidora, é a própria vida: o ser também é esquecimento.

"Suscitar acontecimentos": um reencantamento do real

25 janeiro, 2010


“Acontecimento” (1973), de Maria Helena Vieira da Silva

Deleuze nunca foi ingênuo a ponto de pensar que uma linha de fuga ou um espaço liso nos salvariam, ou bastariam ao desejo; Deleuze é um místico da filosofia, assim como Fernando Pessoa me parece um metafísico das letras, mas Deleuze nunca pensou a tarefa do filósofo assemelhada à de um messias. Tampouco Deleuze foi um cético imbecil, como muitos filósofos que se dizem “...ianos”, críticos, jornalistas de meio-dia, ou seja lá o que for - os niilistas pelos quais Nietzsche sentia arrepios. Lembro-me de uma entrevista publicada na primavera de 1990 em que Gilles Deleuze dizia:

“Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...). Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”.

Suscitar acontecimentos é entrar no concreto sem juízo; criar é um reencantamento do real.


La Société du Spectacle, de Guy Debord

23 janeiro, 2010





[imagens] - La Société du Spectacle é um filme de 1973, dirigido pelo situacionista francês, Guy Debord; baseado no livro de mesmo título, de 1967, a película  mostra a opressão dominante da modernização das esferas pública e privada de toda vida por forças econômicas. Os mass media hegemônicos operam como máquinas de propaganda tanto em nações comunistas como capitalistas, e implantam o fetichismo do merchandise nas mentes das massas.

[images] - Society of the Spectacle, the 1973 film by the french situationist Guy Debord, is based on the 1967 book of the same title, shows the dominating oppression of modernization of both the private and public spheres of everyday life by economic forces. The hegemonic mass media operates as a propaganda machine in both communist and capitalist nations and creates commodity fetishism in the minds of the masses.


A vergonha de ser um homem I: Primo Levi e Gilles Deleuze

21 janeiro, 2010




Os textos de Primo Levi andaram em evidência ultimamente em razão do resgate e da homenagem que Agamben lhe rendera em O que resta de Auschwitz, traduzido para o português por Selvino José Assmann, e saído em 2008 pela Boitempo. O rubor nas faces do executado chamado pelo nome para morrer, os olhos dos muçulmanos do láger ao fitar o atirador, a vergonha de ser um homem, de ter feito concessões para sobreviver, de assistir a homens nascidos para serem nazistas, seria, para Giorgio Agamben, um lampejo em uma corrente de subjetivação – o sujeito em estado puro - última territorialidade de um sujeito.
Poucos dos que lêem Agamben ou Levi (É isto um homem?), contudo, sabem da importância que Levi teve para Gilles Deleuze, principalmente nos últimos anos de sua filosofia. A vergonha de ser um homem está em Primo Levi e, certamente, também nos campos de concentração; mas Deleuze, embora, não afirme o campo como paradigma biopolítico do moderno, a exemplo de Agamben, dizia em uma entrevista a Toni Negri que, “quanto à vergonha de ser um homem, acontece de a experimentarmos também em circunstâncias simplesmente derrisórias: diante de uma vulgaridade grande demais no pensamento, frente a um programa de variedades, face ao discurso de um ministro, diante de conversas de bons vivants”.
Deleuze, de seu lado, sabia que o encontro do homem com a verdade ruborizada de sua condição humana não implica qualquer paixão triste; ao contrário, essa vergonha de ser um homem, que podemos experimentar tanto em um campo de concentração (em sentido histórico) quanto diante das situações mais ordinárias do capitalismo contemporâneo (o campo de concentração em sentido biopolítico), “é um dos motivos potentes da filosofia, o que faz dela forçosamente uma filosofia política”. A pergunta com a qual quero deixá-los – prometendo esboçar uma resposta em uma próxima vez – é a seguinte: como se poderiam articular, ou desarticular, os direitos humanos, a filosofia e a vergonha de ser um homem?


Lançamento: Sopro 19

19 janeiro, 2010


[lançamento] - O Sopro 19, panfleto político-cultural editado por meus amigos Alexandre Nodari e Flávia Cera, está na web– e com design gráfico reformulado (e belíssimo)! Além de poder ser visualizado em PDF e em versão Flash, agora Sopro também conta com transcrições em HTML. Ficou uma maravilha: agora, pode-se navegar por edição, resenha, verbete... em suma: é até  gostoso se perder. Essa primeira edição de 2010 conta com um fragmento do livro Versão Brasileira, de João Villaverde e Filippo Cecilio.  Para visualização, lembro que o Nodari indica o Google Chrome (download aqui), que é minha escolha pessoal, embora no Lentenet Explorer fique igualmente bom.
* Informação obtida via: Consenso, Só no Paredão!, do Nodari; a quem quiser conhecer o projeto do Instituto da Cultura e da Barbárie, vale acessar: http://www.culturaebarbarie.org/. Lá, vocês poderão acessar blogs de que gosto muito (tanto que estão indicados na seção “territorialidades”): Quarentena – o que sobrou do limbo, de meu querido amigo Leonardo D’Ávila de Oliveira, Mundo-Abrigo, de Flávia Cera, e o recente Fiat Ars Pereat Mundus, de Diego Cervelin, a quem fui apresentado pelo Léo D’Ávila. Boa leitura!

Lançamento: livros de Michel Maffesoli

18 janeiro, 2010



[lançamento] - Michel Maffesoli, sociólogo e professor da Université René Descartes - Sorbonne Paris V, lançou recentemente pela CNRS Éditions os livros abaixo. O primeiro, trata-se do periódico Les cahiers européens de l’imaginaire, cuja figura-tema é a do bárbaro. Os demais, são livros em que Michel Maffesoli atua como autor ou co-autor; o último, contudo, Les formes eléméntaires de la vie religieuse, é um clássico da literatura durkheimniana prefaciado por Maffesoli. Basta clicar aqui para ser redirecionado ao site de CNRS Éditions e obter maiores informações sobre cada uma das obras.
*
No début de 2010, Maffesoli, muito gentilmente, autorizou-nos a tradução de um de seus últimos ensaios, Dionysos redivivus, saído apenas em Paris, e distribuído entre seus alunos e amigos; agora, temos a honrosa tarefa de tornar o texto acessível  e difundi-lo aos leitores lusófonos de Michel Maffesoli. A tradução está bem-encaminhada e deverá ser publicada em língua portuguesa meados de 2010 – informo por aqui acerca da publicação.
Enquanto a tradução desse belo texto de Maffesoli não é publicada, convido-os a conferir uma tradução saída na penúltima edição de Captura Críptica, do CPGD/UFSC, do ensaio, igualmente de Maffesoli, intitulado La babarie à visage humain, que traduzi juntamente com Camile Maria Costa Corrêa, mestranda em Neurociência e Comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP). O original, em francês, pode ser acessado em PDF aqui; a tradução portuguesa, igualmente em PDF, encontra-se disponível para leitura e impressão aqui.


 

"Democracy versus people": Slavoj Žižek e o Haiti

17 janeiro, 2010




O haiti: sob os escombros, um deserto

* O texto abaixo foi escrito por Slavoj Žižek, publicado em 18.08.2008, em New Statesman e republicado em www.lacan.com. Sinto muito não poder traduzir – em pleno janeiro, o tempo anda escasso; de todo modo, creio que se poderá aproveitar algo disso. Prefiro, contudo, pensar no Haiti como um deserto a sucumbir ao espetáculo televisionado da catástrofe. Há sempre um deserto político e afectivo sob os escombros. É sempre isso que resta quando tudo foi retirado: o deserto, o corpo-sem-órgãos: o ponto em que uma vida... dá o bote na morte.

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[arquivo] - Noam Chomsky once noted that "it is only when the threat of popular participation is overcome that democratic forms can be safely contemplated". He thereby pointed at the "passivising" core of parliamentary democracy, which makes it incompatible with the direct political self- organisation and self-empowerment of the people. Direct colonial aggression or military assault are not the only ways of pacifying a "hostile" population: so long as they are backed up by sufficient levels of coercive force, international "stabilisation" missions can overcome the threat of popular participation through the apparently less abrasive tactics of "democracy promotion", "humanitarian intervention" and the "protection of human rights".

This is what makes the case of Haiti so exemplary. As Peter Hallward writes in Damming the Flood, a detailed account of the "democratic containment" of Haiti's radical politics in the past two decades, "never have the well-worn tactics of 'democracy promotion' been applied with more devastating effect than in Haiti between 2000 and 2004". One cannot miss the irony of the fact that the name of the emancipatory political movement which suffered this international pressure is Lavalas, or "flood" in Creole: it is the flood of the expropriated who overflow the gated communities that protect those who exploit them. This is why the title of Hallward's book is quite appropriate, inscribing the events in Haiti into the global tendency of new dams and walls that have been popping out everywhere since 11 September 2001, confronting us with the inner truth of "globalisation", the underlying lines of division which sustain it.

Haiti was an exception from the very beginning, from its revolutionary fight against slavery, which ended in independence in January 1804. "Only in Haiti," Hallward notes, "was the declaration of human freedom universally consistent. Only in Haiti was this declaration sustained at all costs, in direct opposition to the social order and economic logic of the day." For this reason, "there is no single event in the whole of modern history whose implications were more threatening to the dominant global order of things". The Haitian Revolution truly deserves the title of repetition of the French Revolution: led by Toussaint 'Ouverture, it was clearly "ahead of his time", "premature" and doomed to fail, yet, precisely as such, it was perhaps even more of an event than the French Revolution itself. It was the first time that an enslaved population rebelled not as a way of returning to their pre-colonial "roots", but on behalf of universal principles of freedom and equality. And a sign of the Jacobins' authenticity is that they quickly recognised the slaves' uprising - the black delegation from Haiti was enthusiastically received in the National Assembly in Paris. (As you might expect, things changed after Thermidor; in 1801 Napoleon sent a huge expeditionary force to try to regain control of the colony).

O que é o ato de criação?, de Gilles Deleuze

15 janeiro, 2010



* DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce que l’acte de création ? In : Deux régimes de fous. Textes et entretiens (1975-1995). Édition préparée par david lapoujade. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003, p. 291-302.

[arquivo] - Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia?
Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a este ou àquele domínio.
Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma idéia em cinema ou uma idéia em filosofia.
O que é ter uma idéia em alguma coisa?
Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo.
Qual é o conteúdo da filosofia?
Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”.
É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.

O cinema de Guy Debord, de Giorgio Agamben

13 janeiro, 2010





* AGAMBEN, Giorgio, «Le cinéma de Guy Debord» (1995), in Image et mémoire, Hoëbeke, 1998, p. 65-76.

[arquivo] - O meu intuito é o de aqui definir certos aspectos da poética, ou melhor, da técnica composicional de Guy Debord no domínio do cinema. Evito voluntariamente a expressão “obra cinematográfica”, nominação que ele próprio rejeitou e que se pudesse utilizar a seu propósito. “Considerando a história da minha vida, escreveu ele em In girum imus nocte et consumimur igni [1978], não podia fazer aquilo a que se chama uma obra cinematográfica”. De resto, não apenas penso que o conceito de obra não é útil no caso de Debord, como sobretudo me pergunto se hoje, cada vez que se quer analisar aquilo a que se chama de obra, quer seja literária, cinematográfica ou outra, não seria necessário colocar em questão o seu próprio estatuto. Em vez de interrogar a obra enquanto tal, penso que é preciso perguntar que relação existe entre o que se podia fazer e o que foi feito. Uma vez, como estava tentado (e ainda estou) a considerá-lo um filósofo, Debord disse-me: “Não sou um filósofo, sou um estrategista”. Ele viu o seu tempo como uma guerra incessante em que toda a sua vida estava empenhada numa estratégia. É por isso que penso ser preciso interrogar-nos sobre o sentido do cinema nessa estratégia. Porquê o cinema e não, por exemplo, a poesia, como o foi no caso de Isou, que tinha sido tão importante para os situacionistas, ou porquê não a pintura, como para um dos seus amigos, Asger Jorn?
Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde vem essa ligação, e de que história se trata?
Tal deve-se à função específica da imagem e ao seu carácter eminentemente histórico. É preciso especificar aqui alguns detalhes importantes. O homem é o único animal que se interessa às imagens enquanto tais. Os animais interessam-se bastante pelas imagens, mas na medida em que são enganados por elas. Podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele será enganado. Mas quando o animal se dá conta que se trata de uma imagem, desinteressa-se totalmente. Ora, o homem é um animal que se interessa pelas imagens uma vez que as tenha reconhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele interessa-se pelas imagens uma vez que tenha reconhecido que não se tratam de seres verdadeiros. Um outro aspecto é que, como mostrou Gilles Deleuze, a imagem no cinema (e não apenas no cinema, mas nos Tempos modernos em geral) já não é algo de imóvel, já não é um arquétipo, quer dizer, algo fora da história: é um corte ele próprio móvel, uma imagem-movimento, carregada enquanto tal de uma tensão dinâmica. É essa carga dinâmica que se vê muito bem na fotos de Marey e de Muybridge que estão na origem do cinema, imagens carregadas de movimento. É uma carga deste gênero que via Benjamin naquilo a que chamava uma imagem dialéctica, que era para ele o próprio elemento da experiência histórica. A experiência histórica faz-se pela imagem, e as imagens estão elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar a nossa relação à pintura sob este aspecto: não se trata de imagens imóveis, mas antes de fotogramas carregados de movimento que provêem de um filme que nos falta. Era preciso restituí-las a esse filme (vocês terão reconhecido o projeto de Aby Warburg).
Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história cronológica, mas a bem dizer de uma história messiânica. A história messiânica define-se antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar alguma coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, em que alguma coisa deve ser consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se à cronologia, sem sair para um exterior. É essa a razão pela qual a história messiânica é incalculável. Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir que se tratavam de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao mesmo tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias é sempre já chegado, está sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra. É esta situação messiânica do cinema que Debord partilha com o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da sua antiga rivalidade – Debord disse em 68 de Godard que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –, Godard reencontrou o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é esse paradigma, qual é essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de Godard, explicou que era a montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era dessa coisa que o homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra Godard nas Histoire(s) du cinéma.

De volta ao século XIX, de Bento Prado Júnior

11 janeiro, 2010




[arquivo] - Quando me propus tal tema, para esta conferência, tinha em mente  um dos paradoxos de nossa contemporaneidade – o que há de fortemente regressivo  nos processos desencadeados pelas novas tecnologias e pela nova economia – apenas no campo da filosofia. Cogitava exclusivamente na volumosa produção das chamadas cognitive sciences e pensava apontar como, em algumas de suas manifestações, tal literatura nos devolve à atmosfera do naturalismo de meados do século XIX, que exigiu vários “retornos a Kant”, bem como os esforços simultâneos de Bergson, de Husserl e de toda a linha da filosofia analítica . O paradoxo seria o seguinte: tudo se passa como se boa parte dos pensadores contemporâneos ignorassem todas as grandes obras do século XX. Hoje, muitos não se escandalizariam, apenas “modernizariam” a frase de Büchner, há 150 anos atrás, segundo a qual o cérebro seria uma espécie de “glândula” e o pensamento, sua “secreção”. Há poucos meses atrás, o recém-falecido e grande cientista Francis Crick (Prêmio Nobel e descobridor do DNA) anunciava triunfalmente ter descoberto a “célula” da alma, que punha por terra, definitivamente, com a autoridade da ciência positiva, uma visão religiosa do mundo e suas implicações como a imaterialidade e a imortalidade da alma. Como se as idéias de subjetividade, consciência e significação remetessem automaticamente ao espiritualismo e como se o monismo reducionista não fosse auto-contraditório.
Retornando há algumas décadas antes de Büchner, poderíamos lembrar a frase de Hegel contra a Frenologia de Gall, quando afirmava que “A razão não é um osso”. Hegel, é claro, é um filósofo idealista, mas sua frase poderia ser endossada por Husserl e Russell, pelos empiristas lógicos, sem pensar, é claro, nos neo-kantianos, isto é, por toda a filosofia significativa do século XX. Numa palavra, como procuraremos sugerir, o monismo reducionista elimina as idéias de significação e de verdade (laboriosamente montadas por Platão e Aristóteles em seu combate contra a sofística), deixando de lado a evidente circularidade da expressão cognitive sciences, ou ciências dos processos cognitivos ou, no limite, ciência do conhecimento científico. Embora, é claro, como veremos, essa disciplina pertença antes ao domínio da especulação filosófica e de apostas sobre os resultados futuros (ainda desconhecidos) da própria ciência. Uma ciência ou uma nova versão de uma antiga concepção materialista-metafísica, incontrolável cientificamente?
     Mas nossa intenção não é a de polemizar, globalmente, contra as ciências cognitivas, não só pelo evidente interesse (tanto científico como filosófico) dessa nova literatura, mas também pela nossa limitadíssima familiaridade com ela. Nosso alvo é bem mais restrito e modesto: examinar as dificuldades filosóficas implícitas em um dos projetos teóricos mais interessantes da área e que não deixa de ter algo de paradigmático dessa nova literatura.

A vigilância do desejo, de Roland Barthes

09 janeiro, 2010



[arquivo] - *Este texto foi escrito para a entrega do prêmio "Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na originalmente na "Cahiers du Cinéma" (maio/1980);  entre nós, o texto foi reproduzido em BARTHES, Roland. Inéditos, v. 3 - Imagem e Moda, com Tradução de Ivone Benedetti, saida pela editora Martins Fontes, de São Paulo.
  
Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; mas e artistas?
Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e - a mais paradoxal de todas - fragilidade.
Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento.
Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós.
Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo contemporâneo e para você mesmo.
Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de uma nova questão.
Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30 anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você tinha de captar de obra em obra.
Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]
Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele.
A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância do desejo.
O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.

Nota: imanência e causalidade em Spinoza

08 janeiro, 2010



 «  A imanência se opõe a toda eminência da causa, a toda teologia negativa, a todo método da analogia, a toda concepção hierárquica do mundo. Tudo é afirmação na imanência ».DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression.  Paris : Éditions de Minuit, 1968.


Da dobra à obra: ética de si, estética da existência, amizade e verdade em Michel Foucault

07 janeiro, 2010



* o riso de Foucault... Paris, 1975 *


[Ensaio] - É com grande satisfação que noticio aos caros leitores que a Revista Captura Críptica: direito, política, atualidade, do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, acaba de publicar, no último volume do ano de 2009, um ensaio que escrevi sobre a filosofia de Michel Foucault em sua, assim chamada, última fase, posterior à publicação de A Vontade de Saber (1976). O ensaio explica a aparente reviravolta nos quadros da pesquisa foucaultiana sobre a governamentalidade, e parte em direção aos últimos textos e cursos proferidos por Foucault no Collège de France, inclusive os até há pouco tempo inéditos cursos Le gouvernement de soi et des autres I (Paris: Gallimard, 2008), proferido no biênio 1982-1983, e Le courage de la verité: le gouvernement de soi et des autres II (Paris: Gallimard, 2009), curso do biênio de 1983-1984, que Foucault ministrou no primeiro trimestre de 1984, alguns meses antes de seu falecimento, em 25 de junho de 1984. Além disso, o texto é articulado com os principais comentadores de Michel Foucault, como Gilles Deleuze, Francisco Ortega e Frédéric Gros, dentre outros, e tem por pano de fundo teórico os conceitos de ética de si e de dobra, sobre o qual se articulam os conceitos de estética da existência, amizade e verdade.
Para quem preferir conferir esse, dentre outros ensaios publicados, pode acessá-los todos no Scribd clicando aqui!, ou na coluna à direita, "quelques petites machines: artigos e ensaios".
Quem desejar acessar diretamente o texto em PDF, basta clicar em "continuar lendo...", logo abaixo.


OAB: provas do Exame vão incluir ética e direitos humanos a partir de 2010


[Notícia] - « Brasília, 07/01/2010 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, afirmou hoje (07) que as provas do Exame de Ordem começarão este ano a conter questões sobre direitos humanos, direitos fundamentais e ética profissional, conforme regulamentação aprovada em 2009 pelo Conselho Federal da OAB. Britto destacou que essa novidade será extremamente importante para o avanço na qualidade do ensino jurídico no país e, particularmente, para o aprimoramento da grade curricular das faculdades. "Com isso, vamos focar em quem está investindo em colocar em seus currículos o conceito de humanidade, o que influenciará, a médio e longo prazos, as profissões do Direito já que o estudante terá esse conceito para passar no Exame de Ordem".
 Para o presidente nacional da OAB, a inclusão dessas disciplinas, a partir de 2010, e suas conseqüências positivas para o ensino jurídico, serão propiciadas em grande parte pela unificação das provas do Exame de Ordem. "Com a unificação, haverá agora um diagnóstico confiável e único de todo o Brasil. Sabemos que a qualidade daquele que se formou no Amazonas é a mesma daquele que foi aprovado no Rio Grande do Sul - e isso é importante até porque a carteira da OAB é nacional e o advogado pode atuar em todo território nacional. É importante, portanto, que a qualidade (da formação) seja a mesma, até para evitarmos o que havia no passado, em que a pessoa se inscrevia para o Exame de Ordem na seccional onde achasse ser mais fácil passar", afirmou Britto. »
Quadro: Nuestra imagen actual, de David Alfaros Siquieros.

** Isso, que pode ser interpretado como um gesto humanista, pode, no fundo, ser mais um dos golpes de gênio do humanismo reativo. Sem fogos de artifício, por favor; e muita, muita, cautela: à luz dessa visível captura dos supostos "potenciais emancipatórios" do humanismo pelo direito - a ponto de transformar o conteúdo humanista em disciplina jurídica - não seria ocasião de perguntar-se, como Deleuze lendo Foucault: quem precisa do homem para resistir? A educação é apenas um reflexo empobrecido de nossa imagem puramente atual. Sendo, por outro lado, estritamente curricular: "não é mais cômodo inserir questiúnculas sobre humanidades no Exame de Ordem que efetivamente travar um debate acerca da formação acadêmica dos jovens advogados?". Bom para a instituição, conveniente para as faculdades. O mercado exige humanismo. O capitalismo, a seu modo, sempre foi humanista: Marx já sabia que é precisamente a partir das necessidades de reprodução do humano que o capitalismo opera. É exatamente assim que se troca o mesmo por mais do mesmo. Estaríamos diante de uma nova economia do saber: a "plusmesmice"? O "mais do mesmo" que o capital transfigura e re-injeta nas academias para nos dar em que pensar?


Tradução: Žižek, repressão, de Jean-Clet Martin

05 janeiro, 2010



Filósofo. Professor do Collège International de Philosophie em Paris, França. Autor de « Variations. La philosophie de Gilles Deleuze », publicado originalmente em 1993 pela coleção Petite Bibliothèque Payot.

Deleuze pensaria já como Hegel, mas sem querer – puro hegeliano reprimido. É uma tese de Žižek, em verdade, nada original, sabido que Deleuze não é nada acessível a essas categorias estreitas que constituem a repressão, ou a palavras terminadas em “...iano”. Aliás, ele não é mais bergsoniano que nietzschiano: ele é Deleuze. Um pensamento cujo percurso integra pontos e contrapontos segundo um dobramento que lhe pertence completamente, e no qual ele renova os trajetos, os limiares, em função dos conceitos que inventa. Trata-se, sobretudo, de uma maneira de retroceder seu pensamento, revelando no interior de uma filosofia algo que ali não figura, criando-se precursores, virtualidades que não existiriam não fosse essa criação.

Diríamos, melhor, que o efeito não se reduz à causa, que aquele que lê não é o reflexo daquilo que se lê, quase como se o modelo invocado não existisse em si mesmo senão pelo eco da leitura, enquanto a obra aguarda a onda capaz de renová-la por meio de um esclarecimento que marcha ao revés. Não há nada de mais pobre, pois, que procurar em uma criação os piolhos herdados de seus predecessores. Dizer, ao ler Deleuze, que Hegel já havia pensado isso ou aquilo, não é dizer coisa alguma! É duplamente mal-compreendido o processo do pensamento que passa por Hegel, ignorando o que Hegel faz, e que se passa de Deleuze, criador de conceitos que não encontramos alhures, conceitos tributários da assinatura que os caracteriza. Deleuze não é mais hegeliano que Hegel, kantiano, ou Kant, cartesiano. A história da filosofia é um lance de dados, e a queda não é jamais sem consequência sobre o lance, a ponto de modificar a força das procedências. Longe de mim a ideia de hegelianizar Deleuze ou de apontar uma “repressão” de qualquer natureza quanto à maneira deleuziana de tratar a história da filosofia.


Hegel pensa o conceito como processo e o processo como diferença. Eis o que é de todo modo importante. Deleuze, entretanto, não se reduz a essa linha.  Ele viaja uma outra, que não é nem de Platão, nem de Lacan, nem de ninguém, e que nós não saberíamos ver se nos contentássemos em rebater Deleuze sobre o já existente. É uma linha que marcha de revés e que reencontra seus precursores no ponto de sua queda. Dizer que Deleuze é hegeliano reprimido – eis uma relevante farsa da não-criação que caracteriza as grandes declarações de princípio, calamitosas quando se veem repisadas nos assim chamados meios midiáticos.


Deleuze, pensador das multiplicidades e das variações, não deve absolutamente nada a Hegel, pensador da diferença e da negatividade. Um se exercita na topologia, enquanto outro se exercita na dialética, e os dois momentos não são de mesma natureza, mesmo se um e outro contestam o Ser em nome do Devir, ou a Moral em nome da Lógica. É essa contestação que me interessa e motiva meu livro sobre um e outro. Quanto a Deleuze, ele é tomado em um pensamento que não pode ser aquele de Hegel – uma Lógica do sentido em que a distribuição é problemática, tributária de um problema cujo mapa não é superponível a Hegel, senão em certos pontos – o do movimento ou o do processo. De resto, o que faz Deleuze, sua problemática é a das multiplicidades nas quais as variáveis não se dividem sem mudar de natureza: um caos que não poderá apontar ao infinito de Hegel transfigurado por um real que não é aquele que compartilhamos com Deleuze.

JCM

PS: Aproveito esta oportunidade para esclarecer, na passagem, ainda um outro ponto: se o capitalismo tem a ver com a avidez universal pelo prazer e pelo consumo, nada há nisso, porém, de comum com o prazer, como não se cansa de afirmar Slavoj. Ele recolhe da alegria, ou da felicidade, aquilo de que a moral e o terror suspeitaram desde sempre, e que Lacan nos deixou a pensar  ainda recentemente que é impossível. O “Elogio do amor”, tão em voga, por sua suspeição açucarada das hordas desejantes, não diz mais o que é o prazer de que a filosofia fizera seu objeto de Plotino a Deleuze.


Texto originalmente publicado em língua francesa, em 20.11.2009, no blog de Jean-Clet Martin, sob o título "Zizek refoulement". O autor, muito gentilmente, autorizou-nos sua tradução e a republicação em 29.12.2009.
P.S. Em tempo, o site O Estrangeiro.net, com o qual às vezes colaboro, republicou essa tradução aqui, na seção esquizoanálise.


Dimensiones políticas de la felicidad: un diálogo con Javier Alejandro Camargo, segunda entrega

03 janeiro, 2010


a felicidade: uma vida...


Antes de comenzar, voy a desterritorializarme un poco. Javier Alejandro Camargo, editor del nuevísimo blog “nuda-felicidad-pobre”, ex-alumno de la Universidade Nacional Autónoma de México (UNAM), hoy alumno del Doctorado en Humanidades (Ética) en el Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey (Campus Ciudad de México), es un nuevo amigo que tuvo la intensa felicidad de encontrar por medio de mí blog. Javier me ha invitado muy gentilmente a empezar con él un dialogo público – que, además, puede ser acompañado simultáneamente en los dos blogs -, sobre la felicidad en su dimensión política, que es, si lo entendí bien, objeto de la pesquisa de su tesis doctoral en el ITESM/CCM. Lo texto que originó nuestra conversa, puede ser retomado acá, o en el sitio “o estrangeiro.net”, acáLa primera intercesión de lo mío amigo Javier Alejo puede ser lida acá, en su recién-creado blog.
Caro amigo, tentaré escribir en español, corriendo el riesgo de parecer ridículo bajo tus ojos; sin embargo, creo que entablar un diálogo sobre la felicidad – “en el umbral del 2009-2010”, como tu hablaba en un correo que tú me has enviado, tenga de haber algo de desterritorializante in se – y no simplemente por ser ensayada precisamente en un umbral... Una experiencia diferencial para mí, puesto que es cosa que nunca he tentado: escribir en otra lengua – peor, en una lengua que no domino, ni mismo elementalmente, con el propósito de intentar crear para nosotros alguna pregnancia, alguna ambigüedad en la cual podamos venir a residir momentáneamente – y a mí, me siembra que toda ambigüedad es, por principio, creativa… una multiplicación, no un llamado a la totalización, a lo juicio organizador.
Este, que lo sigue, es un pequeño ensayo igualmente singular; una tentativa de ponerme de salida en el interior de tuyo discurso, de buscar acercarme de un problema que, para mí, es completamente – o casi completamente – extranjero: la felicidad, todavía me vea día sí, día no a brazos con su problemática, que, por veces, cofúndese con aquella de la vita philosophica. Pues, entonces, brindemos al nuevo año juntos, como intercesores; y en este brinde, le agradezco la oportunidad de platicar sobre un tema tan sencillo, pero, a un solo tiempo, tan complejo.
Seamos nómadas, aun que por poco tiempo (cuanto tiempo, eso no importa más que las intensidades de los entretiempos – Deleuze nos enseñara que ni toda la eternidad divina es pareo a un solo entretiempo intensivo). Seamos, pues, como precursores sombríos: no sujetos, sino principios de agitación – más que los movimientos, que son aun demasiado extensivos; experimentemos los desiertos, las estepas, las intensiones (asimismo, con la “s”), que son el índice virtual de las variaciones intensivas, inextensas, afectas del propio pensamiento…
Ahora, antes que lo mío hediondo español se convierta en una empresa absolutamente ininteligible, e corriendo el riesgo de “edipianizarme” demasiado,  regresaré a la mía lengua materna. Este fue el ajustado entre nosotros; pero, lo más relevante: intentarlo implica buscar formas de expresión menores, devenires en lo interior de nuestra propia lengua. Eso también es una fuga deseable, y deseante, en el campo de inmanencia, mucho más allá de las representaciones edipianas de la lengua o de las literaturas mayores.