O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir
ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao
excesso dos discursos oficiais. (Michael Pollak)
Em um pequeno texto, do ano de 1925,
Freud lembrava que a negação constitui “uma forma de tomar conhecimento do que
foi reprimido” (Freud, 2011, p. 277). Embora a negação não seja uma aceitação
do reprimido, negar implicaria “um levantamento da repressão”, capaz de dar
testemunho de uma divisão mais profunda entre as faculdades intelectuais e a
dimensão afectiva.
Entre os sons moucos brandidos pelos
discursos oficiais, as decisões
dos tribunais superiores, o fórceps para fazer nascerem instituições encarregadas
do impossível - a exemplo da Comissão Nacional da Verdade (Lei
Federal n. 12.528/2011), cuja tarefa política é a de reproduzir
simbolicamente o silêncio – o Estado Brasileiro e o governo federal não tem
cessado de reinstaurar o negacionismo como postura intelectual e política
fundamental de nosso tempo.
O
primeiro dos sintomas desse negacionismo encontra-se na recusa pelo Supremo
Tribunal Federal em declarar a não-recepção da Lei de Anistia pela Constituição
da República de 1988. Quase que paralelamente ao ajuizamento da ADPF 153 pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil perante o STF, em 26 de março
de 2009 o Caso Gomes Lund e Outros contra a República Federativa do Brasil era
recebido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, situada na cidade de
San José, na Costa Rica, tendo por objeto responsabilizar a União por detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas (membros do Partido
Comunista do Brasil e camponeses da região) como resultado de operações do
Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar
a Guerrilha do Araguaia.
A derrisória defesa brasileira, que
chegou a alegar em seus últimos estertores, a perda de objeto da demanda - dado
que o STF, em abril de 2010, julgou constitucional a Lei de Anistia -, acabou
derrotada pela sentença
de 24 de novembro de 2010 proferida no âmbito de uma Corte Internacional de
Direitos Humanos.
Desnecessário lembrar que os votos dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal que redundaram na decisão da ADPF 153, se não ignoraram
completamente as disposições de Direitos Humanos aplicáveis ao caso, não
atenderam sob nenhum aspecto à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que considera permanentes, e logo insujeitos à prescrição, os crimes de
lesa-humanidade.
A Corte interamericana de Direitos Humanos concluiu
que as disposições da Lei de Anistia brasileira não podem obstar a investigação
e a punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos,
especialmente em se tratando de lei de autoanistia, preceito incompatível com a
Convenção Americana de Direitos Humanos segundo a jurisprudência da Corte
Internacional. Reconheceu, ademais, o caráter permanente do desaparecimento
forçado, a imprescritibilidade dos crimes e a violação do dever brasileiro de
tipificar o desaparecimento forçado de pessoas. Ainda, consubstanciou-se a
violação ao direito à verdade e da integridade pessoal (especialmente
psicológica) dos familiares das vítimas.
Diante disso, a CIDH fixou uma série
de reparações, determinando ao Estado brasileiro a investigação, o
processamento e a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos
na época da ditadura, o esclarecimento público do paradeiro das vítimas, o
atendimento psicológico a ser dispensado aos familiares das vítimas que o
desejarem pela via do sistema de saúde pública.
Determinou, ainda, que se desse ampla publicidade da
condenação, com ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional, prevendo como garantias de não-repetição a criação de um
programa permanente e obrigatório sobre direitos humanos em todos os níveis
hierárquicos das Forças Armadas, tipificação penal do delito de desaparecimento
forçado, acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado
sobre os fatos, instituição de Comissão da Verdade etc. Finalmente,
oportunizou-se às vítimas o acesso a indenizações por danos materiais e
imateriais.
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Muito além de expor a fratura entre
as interpretações nacional e internacionalista dos Direitos Humanos, o caso
Gomes Lund expõe o negacionacionismo de fundo que há décadas orienta as
políticas institucionais brasileiras empenhadas em acertar contas com o passado
ajustando-o a um discurso histórico oficial. É Freud quem, há pouco, auxiliava-nos
a compreender que a postura negacionista implica o reconhecimento do negado ao
mesmo tempo em que o reprime, e que a negação testemunha uma ruptura entre
dimensões afectivas e intelectuais.
A divisão encontrada por Freud entre
afecto e intelecto na negação, com toda a sua ambiguidade, poderia remeter à
clivagem entre discurso oficial e memória subterrânea que o sociólogo e
germanista francês Michael Pollak (1989) apresentava em Memória, esquecimento, silêncio. Por oposição à memória
institucional, as memórias subterrâneas, dos grupos marginais, dos excluídos,
são as memórias do sofrimento e da dominação.
O campo das disputas
sobre a memória e seus signos esteve sempre aberto: memórias
segmentarizadas, de Estado, enunciados oficiais permeados por excessos do
perdão e negligências pardas, encontram-se com linhas de ruptura que são
subrepticiamente desenhadas, cingidas, esboçadas pelas memórias subterrâneas
que se infiltram pelos espaços não-oficiais e podem quebrar suas linhas molares.
Se, como quiseram Nietzsche e
Clastres, a memória, mas também a lei, é inscrita no corpo a partir de um sistema
de afectos e de crueldade, são as memórias subterrâneas, não raro resistentes
na morada de seu silêncio, que podem emergir e travar combates no campo da
formação simbólica do político. Combates,
guerras de guerrilhas, não guerras de abolição: não se trata de suprimir os
discursos oficiais, mas de penetrá-los por baixo, pelas costas, traí-los, fazerem-se
cravar o ferrão nas próprias costas, pronunciar no interior dos espaços
institucionais – e também para muito além deles – as linhas de ruptura de que
os saberes de Estado, as investigações documentais e o poder jamais serão
capazes.
O que Pollak, como Freud,
compreenderam muito bem é que a negação está longe de ser um dispositivo puro
de reconhecimento ou de repressão: a negação é um misto; negar-se a cumprir a decisão
da Corte Interamericana, como vem fazendo o Estado Brasileiro já há um ano, nem
reprime o conteúdo negado – pois algo sombrio dele se desprende e parece
persistir como uma memória silenciosa, roída por dentro – nem o dá integralmente
à vista.
A decisão do caso Gomes Lund
constitui um dos primeiros espaços institucionais povoados pelas memórias
subterrâneas. A negação de seu cumprimento constitui, mais que uma atitude
hipócrita, o gesto do reprimido daquele que confessa: o momento enrubescente em
que a repetição consciente do “Não é isso” torna-se, sem que percebamos,
afirmação: “Não, é isso”.
A
negação, no entanto, não contém nunca a condição para sua própria superação
dialética. O que sua impenetrabilidade inaparente e atual oferece, com a rotura
entre o intelectual e o afectivo, é o próprio limiar entre o silêncio e o
simbólico: pequenas rahaduras no interior das continuidades supostamente
monolíticas, linhas de fuga ou de ruptura que se insinuam por entre as linhas
de segmentariedade dos aparelhos de Estado. Esse limiar constitui a positividade
possível do passado que Deleuze afirmava ser o fundamento do próprio tempo: só
há memória subterrânea.
* Para outros textos sobre o tema, visite: http://murilocorrea.blogspot.com/search/label/mem%C3%B3ria