“É justamente a
regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra
dominação possa dobrar aqueles que dominam”.
Michel
Foucault
Fazer
do nome um monstro. Quando Dênis Lehher Rosenfield
deixa ver, em toda a agramaticalidade substantiva da superfície de seu nome
pessoal, sua responsabilidade: “Dénies L’horreur, Rosenfield”.
Brincamos, apenas: em
francês, Dênis Lehher Rosenfield é quase homófono de “Dénies L’Horreur,
Rosenfield” (“negas o horror, Rosenfield”) e quase homógrafa de “Dénies L’Erreur,
Rosenfield” (“negas o erro, Rosenfield”). E pensar que não é a acusação que
temem os militares responsáveis por graves violações de Direitos Humanos –
afinal, disso são acusados desde 1964 –, mas o vocativo; a evocação do nome, sob circunstâncias institucionais
especiais, que arriscaria fazer monstro até dos nomes mais insuspeitos.
O gracejo parece ainda
mais gracioso porque Rosenfield fez toda a sua
formação entre as décadas de 80 e 90 en
France, de modo que arrisca ter ouvido uma ou muitas vezes seu nome do meio
– justamente o materno, que não evoca, reconhece ou interioriza a Lei – soando
como “o horror” ou “o erro”, seguindo o prenome que, este, deve ter sempre
soado como Dénies: “Tu negas”, e o
nome-do-Pai, significativamente ouvido na função de vocativo: “Tu Dénies, Rosenfield”.
Seu nome talvez
antecipasse a ingenuidade parasitária de afirmar que a Lei de Anistia brasileira
representa um marco sem par entre os projetos de pacificação e reconciliação no
cenário pós-ditatorial latino-americano, a fim de minar o princípio do
argumento que faz do Brasil o Estado menos avançado da América Latina em matéria
de justiça de transição.[1]
Como explicar, então, que a condenação brasileira no caso Gomes
Lund contra a República Federativa do Brasil
junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos comprove abertamente a inépcia
das instituições estatais em fazerem o mínimo: reconhecerem sua
responsabilidade?
À
sua imagem, eis o que Rosenfield fizera em um texto publicado em 22.III.2012,
na Folha de São Paulo: negar, renegar, denegar, abnegar. “O risco de uma Comissão do Acerto de Contas”,
republicada pelo sítio do Instituto
Millenium, traz à tona alguns argumentos antigos e outros novos sobre a
defesa da Lei de Anistia brasileira. Ocupo-me em por em questão os principais, a partir de agora:
* * *
O argumento central de Rosenfield, ao
redor do qual podem ser articulados todos os demais pontos, é este: “Uma comissão dirigida contra os militares
seria um evidente contrassenso, pois, então, o seu nome deveria ser Comissão de
um Acerto de Contas”.
O argumento produz a impressão
de uma lógica privatista, a do acerto de contas – lógica que, aliás, marca o
pensamento do filósofo Dênis Rosenfield – a uma matéria pública. Lógica que,
mais que não compreender a dimensão pública do espaço de discussão sobre a
memória e a verdade em um contexto precisamente qualificado como pós-ditatorial por Idelber Avelar em Alegorias da Derrota, busca fazer da
democracia brasileira um a priori histórico
do presente, enxergando, nele, paradoxalmente, seu télos, seu inultrapassável ponto de chegada.
Ao mesmo tempo, a insistência
em imprimir à Comissão da Verdade uma lógica privatista por meio da qual
Rosenfield quer nos fazer confundir a necessidade internacionalmente reconhecida de os governos pós-autoritários assumirem sua responsabilidade diante
de graves violações de Direitos Humanos com a impolida e odiosa qualidade
apolítica de um mero “acerto de contas”, uma “cobrança feita no portão de casa”,
despida de qualquer formalidade ou rigidez institucional, assume estrategicamente a tarefa de obliterar o campo de
discussão pública que uma Comissão da Verdade tem por ofício reabrir aos
cidadãos.
Rosenfield não quer dar
a ver que as perguntas sobre o passado só nos vingam da atual impossibilidade
de interpretar o passado – porque ter o poder de interpretar o passado
significa arriscar apoderarmo-nos do futuro; por isso, elogia a restrição às fontes
que podem sugerir as reinterpretações, restituições e reapropriações dos
discursos produzidos no período ditatorial. Isso que Rosenfield chama vingança, acerto de contas, revanche,
assinala que o comum pode ser, uma vez mais, posto em jogo.
E o comum está em jogo,
mas vertido em discursos dos quais aqueles que sempre tiveram o direito de
consentir a palavra, fazer falar e mandar calar (usando os corpos individuais
como superfície de inscrição de suas injunções sobre os regimes dos signos, até
o limite da morte individual) continuam a querer ser os únicos e legítimos
proprietários, gestores dos discursos sobre o período histórico que, julgam, “foi
o deles”.
Os militares já não podem censurar os espaços
institucionais e sociais de produção de sentido. Tampouco cientistas,
pesquisadores, artistas, poetas, políticos e literatos, para além do saber de
Estado; essencial, mas nunca monolítico. Só há coletivos micropolíticos que
operam nas roturas entre Estado e sociedade.
De nada vale afirmar
axiomaticamente que “Nessa história não há mocinhos nem bandidos”. De um ponto
de vista interno ao argumento, porque a resistência de esquerda é qualificada
pelo próprio Rosenfield como terrorista; donde se pergunta: “se eles são os terroristas da esquerda, e nessa
história não há mocinhos ou bandidos, sob que razão os militares esconderiam então
o seu terrorismo de Estado?”. De um ponto de vista externo, porque, como não cessou de dizer
Vladimir Safatle, “nem todas as formas de violência se equivalem”. A violência
de que se utilizam aqueles que se armam para resistir à violência estruturada
de um Estado ilegítimo e opressor não possuirá, nunca, a mesma qualidade democrática
da violência de que este Estado, ilegítimo e opressor, utiliza-se para reprimi-los.
O argumento de Safatle baseia-se no direito à resistência de John Locke, filósofo
político liberal que talvez seja familiar a Rosenfield.
O mesmo Rosenfield que
afirma que “A constituição da Comissão da Verdade deveria ser pautada pela
imparcialidade e não por qualquer viés ideológico, algo que só deformaria o seu
próprio trabalho.”
A finalidade da
Comissão da Verdade não pode nem deve ser “imparcial” (o que significa desideologizada, no vocabulário de Rosenfield) porque desempenha uma função institucional: apurar as
responsabilidades do Estado brasileiro em graves violações de Direitos Humanos.
Essa é uma função internacional e historicamente reconhecida a toda Comissão da
Verdade, e obedece à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
como lembra Pádua
Fernandes. A não ser sob o ponto de vista normativo, da perspectiva dos arranjos de forças não há imparcialidade possível para investigar o passado, pois o
passado não se produziu fora dos campos cerrados das condições sociais,
econômicas, governamentais e também ideológicas que permitiram sua singular
emergência. A desejada imparcialidade e a defesa dos militares está garantida
pelo devido processo penal - o mesmo que os Tribunais Militares não respeitaram para
condenar dissidentes políticos.
O Estado não produz
história, ainda que possa produzir uma certa narrativa histórica, em que,
sobretudo, ele se torna o principal implicado, juntamente com seus agentes.
Documentos produzidos unilateralmente pela ditadura só mostram como o Estado se
aparelhava; prova a singularidade da atuação repressiva do Estado e de seus
agentes sobre os resistentes políticos – cuja resistência é, ainda hoje,
desqualificada como terrorista, sem se aperceber de que o argumento que torna a
resistência civil ilegítima, torna simetricamente ilegítimo o assalto dos
militares ao poder constituído em 1º de Abril de 1964.
No entanto, há um instante em que a negação se converte em positividade salvífica: trata-se de uma disputa pelo lugar do messias, que
os militares esforçam-se por ocupar, encarregando-se da teleologia da história,
a qual não existe e cuja autoria não poderia ser-lhes atribuída, pois não pode
ser atribuída a ninguém em particular (tanto menos ao Estado). “Ninguém é
responsável por uma emergência, ninguém pode se autoglorificar por ela; ela
sempre se produz no interstício”, afirmaria o Foucault de Nietzsche, a genealogia e a história.
As emergências são
impessoais e designam a abertura de um espaço de confronto. Isso também
significa que militares, sociedade organizada, Estado ou instituições nada
podem fazer para conter uma emergência. A estipulação das condições de uma
emergência qualquer constitui o campo de imanência sobre o qual Estado e instituições são
erigidos e, por essa mesma razão, tais condições não podem ser agarradas,
manipuladas, sem destruir seu próprio solo.
A
mitologia da ampla reconciliação nacional, construída a partir da Lei de Anistia, por seus presumidos efeitos de pacificação e concórdia,[2] creditam-se da falácia de
que os militares e a direita brasileira continuam imparciais e desqualificam
politicamente a memória que está em jogo.
Colocar a memória em jogo, fazer sua
genealogia, perscrutar eticamente suas visibilidades – isso que também faz
parte das escrituras da História, e que não cabe unicamente ao Estado – serve precisamente para fazer vacilarem as
verdades constituídas; afinal, a verdade sobre a reconciliação - da qual os
militares e a direita se autoproclamam os instituidores - bem pode ser um erro que teve,
até agora, “a seu favor o fato de não poder ser refutada”, como quisera
Foucault sobre a genealogia da verdade em geral.
Não houve, até hoje, erro mais
irrefutável nem “verdade” mais parcial e ideológica que o recalque civil-militar
imposto pela generalização do discurso de que a ditadura no Brasil é
página virada. Não há nada mais político, interessado e privatista que o
recalque civil-militar; e não há nada mais ideológico que negar o erro e o
horror, Dênis.
--
[1] É Rosenfield quem escreve que “O Brasil apresenta, dentre os países da América Latina, um
modelo único de transição de um regime autoritário para um democrático. Seu
norte foi o da conciliação nacional, seu instrumento foi a Lei da Anistia,
válida para todos os lados”. Não se apercebe, porém, de que a Lei de Anistia,
de 1979, aprovada “bionicamente”, excepciona “os
que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e
atentado pessoal”.
[2] Escreve Rosenfield: “[...]
pretender revogar a Lei da Anistia é um ato que tem como objetivo substituir a
concórdia estabelecida pela discórdia”, e também: * “[...] os militares têm razão em ter
reagido, pois estão defendendo uma lei de pacificação nacional”. E, o
que se assoma como ainda mais interessante é que Rosenfield afirma como único
ponto a favor do governo Dilma que “[...] o Brasil
chega à posição de sexta economia do mundo, graças à sua estabilidade
institucional e ao seu ambiente político”, dando a ver a filiação (a meu
ver nem um pouco oculta, sobre o qual Eduardo
Viveiros de Castro há muito alerta) do caráter desenvolvimentista dos
governos Lula-Dilma às estruturas de desenvolvimentismo da ditadura militar.
* Este texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #desarquivandoBR
* Este texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #desarquivandoBR