Quinta-feira à noite; enfiava-me a ler a tradução que Foucault
havia feito da "Antropologia do ponto de vista pragmático", de Immanuel Kant. Lá pelas tantas, falando sobre a
memória como uma faculdade do conhecimento sensível, Kant – todo moralista –
envereda a falar pesarosamente sobre os fenômenos de perda de memória, dizendo tratar-se de uma experiência funesta. “Mas há ocasiões em que não somos culpados disso”,
escreve, relatando em seguida o caso das pessoas idosas que se lembram em detalhes de
memórias dos anos de juventude, mas se esquecem rapidamente dos acontecimentos
recentes.
Essa perda pode, contudo, também ser o
efeito de uma distração habitual, que de ordinário se produz nas leitoras de
romances. As leituras de diversão, tratando-se de puras ficções, deixam à
leitora a possibilidade de inventar livremente, ao alvedrio de sua imaginação.
Isso, naturalmente, provoca uma distração e torna habitual, no espírito, o que
Kant diz ser “um estado de ausência”, caracterizada pela falta de atenção
àquilo que é presente. Engendrados esses maus hábitos, a memória não pode
deixar de ser falha. De modo que – são palavras quase literais de Kant - “praticar
a arte de matar o tempo e de tornar-se inútil para o mundo, e depois reclamar
da brevidade da vida, é provocar – além de uma disposição à fantasmagoria – um
dos atentados mais nocivos à memória”.
As leitoras de romances do tempo de
Kant encontravam-se, àquele tempo, muito à frente de seus filósofos censores. Talvez fosse preciso enunciar um pequeno princípio, que Kant renega com
veemência: toda metafísica, mas também
toda política, começam pela imaginação, pelo obscuro, pelo sensível.
Contra o moralismo de Kant, e para além
de Kant, é essa fina arte de se tornar um pouco mais inútil a este mundo – é, portanto,
a imaginação e a fantasmagoria – que deveríamos erigir a princípios existenciais
de toda e qualquer política.
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