Herzog projetado
sobre a fachada do Clube Militar do Rio no Ato Contra a Comemoração do Golpe de
64
(29 de março de 2012)
"Uma vez que um
quase-espectro faz assim sua aparição, trata-se também do direito à
manifestação de uma certa verdade (um pouco espectral, em parte espectral) na figura de uma espécie de 'fantasma real'" (Jacques Derrida, Mal de arquivo).
Deleuze
e Guattari nos haviam alertado sobre isto: “inclusive o fascismo é desejo”. Eis
o ponto em que o CsO (corpo-sem-órgãos),
que Deleuze e Guattari dizem confundir-se com o campo de imanência do desejo,
encontra seu limite imanente: desejar o próprio aniquilamento, “às vezes
desejar aquilo que tem o poder de aniquilar. Desejo de dinheiro, desejo de
exército, de polícia e de Estado, desejo-fascista”.
É no interior da
partilha desse desejo que qualquer um que se aplique a desvendar o significado
de festejar o golpe de 64 deve se colocar. Ele já está implicado de
negatividade bastante para que oponhamos aos eflúvios discursivos pelos quais
se manifesta uma adolescente negação (que, víamos
outrora com Freud, não é mais do que sua reafirmação e
chancela).
Proponho
que o questionamento sobre a comemoração do aniversário do Golpe de 64 – e o
retorno dos seus traços vacilantes, deslocamentos de datas e de substantivos, à
direita e à esquerda do calendário e do dicionário – aplique-se mais sobre as
condições atuais que permitem a sua reemergência do que sobre as avaliações. Afinal,
assim como os arquivos sonegados são prometidos ao futuro, simetricamente
também o presente deveria entregar-se a uma genealogia.
Gostaria
de me deter na emergência deste fato: militares da reserva reúnem-se,
convidam-se, organizam os preparativos para congraçarem-se ao redor aquilo que julgam
ter sido a “Revolução de 64”, que teria salvado o Brasil de uma “ditadura
comunista e sanguinária”, como já vi
o Capitão Leônidas Pires Gonçalves afirmar certa vez.
Seus defensores arvoram-se na democrática cláusula do direito de expressão e de
livre manifestação de pensamento construído no interior de um Estado de Direito
que acreditam terem ajudado a construir com uma ditadura que durou vinte e um
anos.
* * *
Em Arqueologia do Saber, Foucault afirmou que embora o real não se
reduza ao discurso, todo acontecimento que é enunciado já se encontra
discursivamente estruturado. Sua genealogia assenta sobre o princípio
nietzschiano segundo o qual todo conceito é um devir: todo o tecido das
verdades institucionalmente produzidas e socialmente aceitas não é possuidor de
uma essência, nem mesmo uma origem, mas indica – e é isso que se deve atingir
por meio de uma crítica genealógica – as condições de emergência de um enunciado.
Aqueles que festejam umgolpe de Estado em nome da atual democracia – e como veículo inseminante
dela – não apenas reafirmam na perversão da festa o nexo de indeterminação entre
direito e anomia; mais que enunciarem o real em um discurso já estruturado,
como quisera Foucault, mostram que afirmar a conexão entre ditadura e Estado de
Direito tornou-se possível; e, como se faz índice o argumento constitucional da
liberdade de manifestação, é nos termos dessa mesma democracia que se tornou
possível dizê-lo.
Não é o estado atual da
democracia brasileira que precisa defender-se dos espectros da ditadura: eles a
ocupam de dentro a fora e fazem a democracia retornar sob a forma da violência constituinte
das resistências que passaram a ganhar as ruas (confira-se, por exemplo: o Levante Popular da Juventude,
os
esculachos dados em torturadores, os
protestos dos manifestantes contra a comemoração do Golpe de 64 pelos militares
da reserva no Clube Militar do Rio [em um registro do
chargista Latuff, mas também em uma cobertura
avacalhada do Grupo O Globo]).
Comemorar o Golpe de
Estado como uma revolução democrática significa que os devires da democracia –
suas condições materiais, mais que um seu conceito –, estão novamente em jogo
no terreno da política. Em nosso contexto, o bloqueio dos arquivos coincide com
o bloqueio dos afetos, que pouco a pouco são liberados nas cidades e no campo e
voltam a enxamear surdamente, voltam a circular e a restituir o espaço público,
decadente desde o fim dos anos 80.
O bloqueio da política,
que não deve resistir por muito mais tempo, coincide com o bloqueio da
democracia e do por vir. E são suas potências revolucionárias arquivadas que o
direito à memória está em vias de liberar uma vez mais com a qualidade de uma
potência intempestiva, cujo espectro – como o de Herzog projetado sobre o
concreto armado do Clube Militar – retorna esquivo, à esquerda, provando, como
quisera Agamben, que o Esquecido por uma tradição não
exige lembrança, mas justiça. Justiça espectral, virtual, sem corpo; o real
feito fantasma: um devir... que nos carrega consigo.
A reunião dos “democratas
da reserva” no Clube Militar do Rio
(29 de março de 2012)
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