“Mergulhado na publicidade, quem,
ensurdecido, não percebe um ânus no alto-falante de uma caixa acústica?”
“Lave-se, lave-se bem, só não se
lave demais, ficaria doente...”.
Michel
Serres.
Le Mal propre: polluer pour s’approprier? (O mal limpo: poluir para se apropriar ?),
saído em 2008 por Éditions Le Pommier,
e traduzido no Brasil por Jorge Bastos em 2011, para a Bertrand Brasil é, em
todos os sentidos, um escrito seminal. Se as incessantes migrações de Serres
entre o exercício do pensamento e as ciências físicas, químicas e biológicas já
não são novidade, Le Mal propre traduz
uma renovada força expressiva em seus escritos: motriz criativa que encantava
Gilles Deleuze.
É a partir da força
múltipla do vocábulo propre (que
significa, a um só tempo, limpo e próprio) que Serres erige a partir da
etologia dos animais inferiores os comportamentos hominídeos que presidem todas
as formas de apropriação. Sua raiz estaria em duas formas de sujar: malpropre, mais uma variação intensiva
do conceito nodal de seu pequeno livro, significa “pouco limpo” ou “sujo”. As
marcas ou as nódoas produzidas pelos corpos animais ao tentarem tornar aquilo
que era limpo (propre) e impessoal,
próprio (propre) e reservado.
Animais como homens
fazem usos mais ou menos etológicos, mais ou menos hominídeos da apropriação
pela sujeira que erige, em Serres, toda uma teoria muito particular do Direito
Natural: “o próprio [le propre] se
adquire e se conserva pelo sujo. Melhor ainda, o próprio [le propre] é o sujo”; exatamente como
cuspimos na sopa para tornar os outros inapetentes, o logotipo suja o objeto e
a assinatura, a página. O limpo é o inapropriado e o sem proprietário; a marca
da apropriação é sujar, marcar, traçar, urinar, ou fazer como as putas de
Alexandria – das quais os executivos do grande capital descendem em linha
direta – e marcar as iniciais invertidas nas solas das sandálias, a fim de que potenciais
clientes as pudessem rastrear pelas marcas.
Conspurcação-apropriação:
esse par atravessa territórios, campos arados com esterco e ureia, o odor
encarniçado que se evola das criptas mortuárias que demarcam lugares
comunitários, o cuspe na sopa e toda forma de sujeira dura, testemunhando que
os verbos avoir [ter] e habiter [habitar] possuem a mesma origem
latina. A vida é concebida, vivida e adormece para sempre sob o chão ancestral
com o sujo sangue de patriotas e imbecis de todo gênero; toda cidade é uma
cidade dos milhões de mortos que transformaram a paisagem em país e a necrópole
em metrópole: “O lugar”, segundo Serres, “não indica a morte, a morte designa o
lugar”. Os três lugares fundamentais? O útero, a cama e a tumba: feto, afeto e
escuridão. A vulva torna-se o nicho, a
morada do amante que a conspurca e a reserva (tal como um objeto marcado) com
sêmen. A cama é o lugar do amor e do descanso; o jazigo, a morada final que o
corpo ocupa e suja, retornando.
Para Serres, a
apropriação tem uma origem “animal, etológica, corporal, fisiológica, orgânica,
vital”, não derivada de nenhum direito positivo e fundamentada, antes, no corpo
vivo ou morto; de modo que Rousseau, ao descrever a invenção da propriedade
pelos homens na segunda parte do “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, teria descrito apenas uma solução imaginária,
nascida, muito antes, quando Rômulo, mantendo-se fiel aos lobos que o criaram,
matara seu irmão gêmeo e rival, fazendo o direito, e a cives, derivar da vida e da bestialidade. O fato de que um direito
natural baseado no corpo e na vida animal tenha se tornado positivo deriva da
evolução de práticas duras na direção de signos, e sujeiras, suaves.
Um movimento
atravessa do duro dos corpos – e natural – ao suave – e cultural – dos signos.
Assim como o pagus converte-se em página, o dejeto suaviza-se em assinatura
de palavras e imagens – signos que, rapidamente, tornam-se tão poluidores
quando as dejeções dos antigos gestos de apropriação.
Os consumidores
tornam-se os locatários de seus carros e produtos: as empresas e suas marcas
ostentatórias seriam seus reais proprietários; como continuam sendo
proprietários de dados suaves e pessoais (identidade, registros, histórico de
compras, hábitos etc.) a respeito de cujo conteúdo não somos mais que
locatários.
Poluição dura e suave
combinam-se: resíduos sólidos, líquidos e gasosos ao lado de “verdadeiros
tsunamis de escritos, de signos e de logotipos com que a publicidade passou a
inundar o espaço rural e citadino, público, natural e paisagístico”, escreve
Serres. Duras e suaves, as poluições resultariam do mesmo gesto conspurcador, ”a
mesma intenção de apropriação e que tem origem animal [...]. Quem cria lagos de
viscosidades envenenadas ou outdoors coloridos garante que ninguém, em seu
lugar ou vindo depois, vai se apropriar daquilo”. Ou não seríamos capazes de
ver, por exemplo, no princípio do poluidor-pagador um retorno da feição
excrementária do dinheiro, e sua exclusão, ao mesmo tempo, apropriante?
Eis o motor suave da
expansão. Fluxo de poluição - fluxo de dinheiro (registro simbólico do
excremento); comunhão espúria de merda, mercadoria e publicidade que rouba a
paisagem aos olhos do comum com outdoors,
palavras, imagens: dejetos suaves, nódoas intermitentes, precárias,
cintilâncias que atravessam e dominam a totalidade do espaço habitável por
homens completamente alienados, i. e., possuídos.
Sinal de que nada mudou desde os chacais. Quando as poluições duras são
suavizadas e retornam com toda dureza, já não se pode separar poluições duras e
suaves, como não se podem separar natureza e cultura ou forças e códigos: “É
verdade”, escreve Serres, “só sabemos falar de poluição em termos físicos,
quantitativos, ou seja, por meio das ciências duras. Mas, não, é precisamente
de nossas intenções que se trata, de nossas decisões, de nossas convenções. Em
suma, de nossas culturas”.
A poluição global
apropria-se de tudo e derruba toda barreira e marcação onde antes sujávamos
ingenuamente o nosso nicho. Já não há mais espaço mapeável, marcações ou
divisórias possíveis: trata-se da luta pelo espaço em sua totalidade. O
apagamento dos limites suprime a própria possibilidade de apropriar-se, de
forma que o direito de propriedade atinge, nesse extremo para sempre excedido, “de repente, um patamar insuportável,
perfeitamente impossível à vida”, e o mundo torna-se um mundo que, não
podendo mais tê-lo, só poderemos habitá-lo como locatários – princípio do
Contrato Natural com o qual Serres denuncia “a ordem cartesiana, ato agressivo
e leonino de apropriação; não devemos mais nos impor como donos e senhores da
natureza”, eis o princípio de uma nova cosmocracia. Sua política? Desejar e praticar
o desapossamento do mundo.
Descobrir, levantar
camadas e estratégias, desmanchar crostas e perceber a beleza num êxtase sem
signo. “Res nullius, mundus”, o mundo
teria se tornado, por excelência, o inapropriável a homens que tampouco se
pertecem ainda: “Homo nullius”. Eis o
que demarca o fim da história de um gesto: o de poluir para se apropriar.
A ele, segue-se a
prática de um dever de reserva, que
assume quatro sentidos positivos: (1) coletivo e objetivo, designa a relação do
homem com seu hábitat; (2) subjetivo,
designa uma obrigação de desprendimento; (3) jurídico, que compreende a
totalidade do mundo e das coisas como “a sucessão hereditária das gerações futuras”;
(4) locativo, pelo qual “não há mais propriedade além da minha reserva”, meu
nicho, seio de fragilidade e miséria ontológica imanentes ao Homem: “O primeiro
que, tendo cercado uma horta, cuidou de dizer ‘Isso, para mim, basta’ e
permaneceu egônomo, sem babar como um caramujo por mais espaço, teve paz com
seus vizinhos e guardou o direito de dormir, de se aquecer, além do direito
divino de amar. É puro Jean-Jacques em versão Serres”. Sequer a assinatura, o
selo ou o nome, persistem próprios: todo nome é uma locação, signo arbitrário,
leve, branco, “Suave, miserável e sem lugar”.
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