Ontem, o
Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil anunciou que incluirá Filosofia do Direito como
disciplina nos próximos exames da Instituição a partir de 2013. O exame
nacional, elaborado e organizado pela Fundação Getúlio Vargas, consiste, hoje,
de duas etapas: uma prova preambular objetiva, de caráter generalista, com questões
que abrangem as diversas áreas da dogmática jurídica e, não raro, favorecem
mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios
problematizantes e propriamente jurídicos; uma segunda etapa, escrita, em que o
candidato responde a questões discursivas curtas e elabora uma peça sobre um problema
dado, em que se avaliam a técnica de redação, argumentação e outros elementos
relevantes para o desempenho da profissão.
No entanto, é de
longa data a – curiosa e ingenuamente – festejada tentativa de colonizar os
espaços de pensamento crítico no direito: em
2010, foram as disciplinas de Direitos Humanos e Ética; agora, em 2013,
seguindo uma tendência em boa parte encampada por muitos concursos públicos, o Exame
de Ordem disciplina e sobrecodifica um dos últimos territórios de resistência
ao sequestro do pensamento jurídico pela técnica: a Filosofia do Direito.
Os efeitos da iniciativa
de 2010, sob este ponto de vista, são exemplares. O que aconteceu à cadeira de
Direitos Humanos, de 2010 para cá, foi sua transformação em uma disciplina
acrítica, reativa, retoricamente esvaziada, de mera enunciação de proposições normativas internacionais – isto, quando não se interpretam tratados
internacionais à luz da jurisprudência interna, aberração mais contumaz – na maior
parte das faculdades de direito, a fim de cumprir a determinação da resolução
do Conselho Federal da Ordem dos Advogados e incrementar os índices das
instituições.
É interessante notar
que nem
mesmo as instituições públicas têm escapado a essa lógica perversa. Não à
toa, a classificação da Faculdade de Direito da UFPR em 34ª colocada no VI
Exame de Ordem (atrás de UEM, 14ª e UEL, 16ª), divulgado aproximadamente há uma
quinzena, tornou-se objeto de preocupação de alunos e professores – o que não
faz senão demonstrar a eficácia da estratégica desempenhada também pela Ordem, de
sequestro do pensamento pela técnica, mesmo em uma das escolas mais críticas do
Brasil.
Com relação à
Filosofia, sua inclusão no Exame despertará nos alunos uma preocupação
pragmática e instrumental com a disciplina que, convenientemente, dispensa os
professores do trabalho de inseminar nos alunos o amor pelo pensamento e a
crítica como atividade prática e política educacional. Com o exame, a Filosofia
do Direito ingressa no rol das disciplinas meramente úteis, cuja utilidade está
provada de antemão e inexoravelmente, contra tudo o que constitui a natureza essencialmente
árida e problemática do pensamento: aquilo que ele tem de ascese transformadora
de horizontes existenciais dos juristas e, com eles, da mundanidade.
Paulatinamente, a OAB e seu exame normalizam
todos os espaços de pensamento no Direito. A Filosofia do Direito, uma das
últimas territorialidades capaz de descodificar o tecnicismo imposto pelo
Exame, deve passar, agora, para o lado do código contra o qual, historicamente,
agia. Na prática - aquela, de que os juristas mais superficiais tanto gostam -,
a Ordem molda indiretamente os currículos universitários, quando são a
universidades que deveriam pautar os exames de Ordem e concursos públicos. Isso
é resultado de um duplo influxo: a franca decadência das instituições
acadêmicas, que se tornam infatigável espaço de repetições medíocres, e a obturação
das pequenas possibilidades de desconstituir e escapar a este código. O fato de
que universidades comecem a discutir temas que deveriam soar paradoxais a
qualquer um – como o “Capitalismo
Humanista”, por exemplo - deveria bastar como indício de o quanto essa
sobrecodificação das universidades, pelas instituições, é paradoxal.
Cada disciplina
propedêutica incluída no Exame representa um golpe nas potências críticas e
inventivas do Direito. Não se trata, de forma alguma, do reforço do interesse
pelos direitos humanos, pela ética ou pela filosofia jurídica: a instituição
conjura e captura mais uma possibilidade de pensamento - e, assim, o pensamento
se torna um pouco mais refém, sequestrado pela técnica.
Os horizontes de
resistência e criação, contudo, permanecem os mesmos: o trabalho sobre si, a
clínica social, a produção desejante, a criação de conceitos e novos planos de
consistência, a desconstituição, a crítica, radical e urgente, e o retrabalho
comum sobre a crítica jurídica; com ela, contra ela e para além dela. A esse
conjunto de trabalhos - que não exige uma postura apenas dos filósofos do
direito, mas dos pensadores de todas as humanidades - foi que chamei, certa
vez, filosofia
do direito na imanência.
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