“É sempre com
mundos que fazemos amor. [...] Fazer amor não é fazer um, nem mesmo dois, mas
cem mil”.
Deleuze
& Gauttari
1) Há poucos dias, um
prostíbulo que funcionava em uma área de declarado interesse público federal
foi
desmantelado pela Polícia Civil de Altamira. Os números não são exatos, mas
algo entre 14 e 17 mulheres, jovens menores de idade e travestis, provenientes da
Região Sul do Brasil, com idades entre 16 e 23 anos, foram resgatadas. Eram
mantidas em cárcere privado e sob regime
de exploração sexual; é possível, aliás, que um esquema de tráfico de pessoas
alimentasse a Boate Xingu. A Polícia apenas chegou ao local em virtude da denúncia
de uma garota de 16 anos que, conseguindo fugir do local em que se encontrava
encarcerada, procurou o Conselho Tutelar. A clientela habitual era formada por
trabalhadores da Hidrelétrica de Belo Monte – que, longe de estar terminada, já
mostra a ética perversa desenvolvimentista que lhe serve de fundo.
2) Uma dentre as travestis,
liberada, retornou ao seu Estado de origem e foi buscar auxílio em um órgão de
proteção à mulher; seus “n” sexos imediatamente colocaram em questão a totalidade
dos tecidos sociais. Os profissionais hesitavam em como se dirigir a ela;
querendo ser educados, acolhedores, não sabiam se empregavam o masculino ou o
feminino, perguntavam-se se um órgão de proteção à mulher tem competência para tutelar
direitos de uma travesti; perguntavam-se, até mesmo, se a Lei Maria da Penha podia aplicar-se a ela; mesmo acolhendo-a, profundamente colocavam-se a questão “o que
é uma travesti? – homem, mulher?”, mas jamais se colocaram a questão “o que é
uma mulher?”.
3) Eis a espessa realidade da sua
figura que desperta mal-estares morais no seio de uma pulsão classificatória; sua
figura híbrida explode os critérios comuns de designação sexual nas pessoas
mais bem-intencionadas – é claro que órgãos de proteção de direitos humanos
querem ajudar, mas, por vezes, não sabem como. Talvez não tenhamos sido
educados para entender que somos portadores apenas de disjunções inclusivas:
não mais masculino ou feminino, mas masculino e feminino e... “n sexos”. O que acontece quando a
alteridade mais radical nos interpela, uma diferença ontológica que não tem
nada da abstração de uma Ideia, mas a espessura concreta de uma figura que
cheira como um homem, apesar de estar coberto com perfume doce? Não fomos
educados para lidar com essa diferença radical, mas com identidades, com mínimos
de diferença, com classificações na zona das quais o estranho logo é
transformado no outsider sem
direitos. Para nós, nada de rapazes “de peitinho”, “bundinha”, “bolsa de couro
e maquiagens” (que mais parecem ser extensões dos órgãos sexuais, como os caracteres
sexuais secundários masculinos: pomo de adão, voz mais ou menos grave, queixo
proeminente e maçãs do rosto, nem tanto). O que fazer quando “tudo isso estava
ali, naquele corpo”?
4) Esse pequeno caso é o sintoma de
algo que se encontra em profunda mudança entre nós; do ponto de vista jurídico,
passaremos, com o tempo, a termos direito a todos os sexos. Eis o que está em
jogo: o nosso direito a todos os sexos. Os psicanalistas, em geral, ora hostilizam,
ora suspeitam da ideia de uma mistura das repartições de gêneros; parecem amar as
dualidades. No entanto, “homem” e “mulher” são significantes que podem ser
interpretados como bem se entender para efeitos da união estável, bem como para
efeitos da união civil - como alguns magistrados mais progressistas têm vindo a
defender; ainda, quando se protegem seres humanos "de ambos os sexos "do fardo real da violência
familiar (capaz de deixar marcas indeléveis) com base nas leis de proteção à
mulher, é sinal de que está definitivamente aberta a báscula para um dos
devires políticos mais potentes que devem encontrar no século XXI o esteio de
sua efetuação histórica. Tornar-se-á um direito fundamental, imanente ao princípio
da igualdade de gênero, o “Cada um tem direito a todos os sexos”. “A cada um
seus sexos”, “A cada um todos os sexos”, eis o que está por baixo das lutas
LGBTTTs, eis porque seus ativistas também lutam pelos direitos sexuais de heterossexuais, que cabem tão
bem nas classificações - trata-se de delirar a igualdade e o bom senso, amplificar os mundos
e a possibilidade de subverter as relações.
5)
“Antes o delírio do bom senso do que sua banalidade”. A sexualidade está
para muito além do familiarismo, na medida em que a energia sexual é objeto de
investimento das massas, de grandes campos orgânicos e sociais. “[...] a
sexualidade” – dizem Deleuze e Guattari – “está em toda parte: na maneira como
um burocrata acaricia os seus dossiês, como um juiz distribui justiça, como um
homem de negócios faz circular o dinheiro, como a burguesia enraba o
proletariado etc. [...]. Hitler dava tesão nos fascistas. As bandeiras, as
nações, os exércitos e os bancos dão tesão em muita gente”. Não falta nunca quem
goze com a pica do mercado – e segundo as durações mais diversas: do day-trade-fucking (que, aqui, faz as vezes
da trepada de uma noite só) ao long-term-screwing
(quando o investidor, que, hoje, pode ser também o proletário, esposa uma
empresa e faz de suas ações e distribuições de lucros a acionistas sua
esperança de uma complementação de aposentadoria futura). Não cessamos de
hipotecar os n sexos por todos os lados – e, para isso, não nos importamos que os
sexos efetuem, no mercado, sua potência não-antropomórfica. O mercado vive de capturá-la, de operar transformações na libido, de fazer-nos desejar servidão voluntária.
6) No entanto, “Uma máquina
revolucionária nada é enquanto não adquirir pelo menos tanta potência de corte
e de fluxo quanto essas máquinas coercivas”. Se “É sempre com mundos que
fazemos amor”, se o amor não passa pelo pessoal senão enquanto um ponto de
conexão ou disjunção, é porque a escolha do que chamamos de objeto amado “[...]remete, ela própria,
a uma conjunção de fluxos de vida e de sociedade que esse corpo, que essa
pessoa interceptam, recebem e emitem, sempre num campo biológico, social,
histórico, no qual estamos inicialmente mergulhados e com o qual comunicamos”,
porque “nosso amor dirige-se a esta propriedade libidinal que o ser amado tem
de se fechar ou abrir a mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos” - lê-se
no Anti-Édipo.
7) Se na Crítica à filosofia do
direito de Hegel, Marx afirmava que a diferença não está entre os sexos (as
séries heterogêneas que derivam na ambivalência homem-mulher), mas entre o sexo
humano e o inumano, é para implodir a representação antropomórfica do sexo, que permanecerá tão
cara à psicanálise freudiana, e que permite definir cadeias heterogêneas de
macho e fêmea designando a última como portadora de uma ausência constitutiva,
reconduzindo tudo aos fantasmas e, em última análise, ao falo que lhe falta. Resultado
dessa operação: falo transcendente e castração onipresente. Eis uma ideia que
Deleuze e Guattari dizem ser perversa, demasiado humana, antropomórfica,
proveniente da má-consciência, não do inconsciente. Tanto que “A representação
molar antropomórfica culmina no que a fundamenta: a ideologia da falta”. E,
todavia, o inconsciente ignora a falta, estende-se ao reino muito terreno das
multiplicidades livres que designam a realidade positiva e plena dos objetos parciais. Eis o que aponta
para muito além da Queer Theory,
hoje: implodir a ideia da sexualidade e da questão de gênero como um mero constructo
social ou cultural; encontrar sua raiz em uma ontologia da diferença radical
que, informando domínios muito heterogêneos como o biológico, o natural, o
social e o cultural, atravessam-nos integral e universalmente. Não mais pensar o biológico em termos matemáticos
(como determinismo), mas como campo virtual povoado de tendências e de
efetuação de potenciais. Pensar e experimentar o sexo em conexão com o ontológico, o biológico
e o político. Fazer do sexo e do gênero, em suas manifestações de múltiplos níveis, em
sua diferença radical, o campo de batalha corporal, o dispositivo de variação
biopolítica por excelência. Fazer o sexo colocar em questão o corpo e o gênero,
a natureza e a cultura. Fazer variar as formas de vida e de existência, como Laerte
Coutinho: o cross-dressing é uma estética da existência e uma forma de falar-verdadeiro que desafia o poder das disjunções exclusivas.
8) Retornemos a uma questão simples
a fim de definir seus contornos; perguntemo-nos, por um instante, o que uma
travesti coloca em jogo diante de um órgão de Estado de proteção à mulher,
quando vai defender seus direitos? Todas as separações, todas as distinções, todas
as classificações que os múltiplos signos que seus sexos emitem e os infinitos
mundos que a sua sexualidade envolve, e que ela nos abre; seu corpo masculino “com
peitinhos”, e “bundinhas”, e “bolsas”, e “colares”, e “contas” é apenas o
índice simbólico de algo maquínico que não cessa de atravessá-la, mas também
não cessa de nos atravessar a todos, em comum e imperceptivelmente: “uma transexualidade
microscópica em toda parte, que faz com que a mulher contenha tantos homens
quanto o home, e o homem, mulheres, capazes de entrar, uns com os outros, umas
com as outras, em relações de produção de desejo que subvertem a ordem
estatística dos sexos” (Deleuze e Guattari, O
Anti-Édipo). O que esses índices envolvem são máquinas desejantes, sexos inumanos, tanto reais quanto irrepresentáveis; mais do que quiseram Deleuze e Guattari, com sua
fórmula esquizoanalítica revolucionária, já não se trata mais de bradar “a cada
um, seus sexos!”, mas de interpretar todo direito relativo a gênero para além
das divisões antropomórficas e binárias: kafkianamente diante da lei, “a cada
um, todos os sexos”. Micropoliticamente, a tarefa da civilização continua a ser
aquela que Simone de Beauvoir estabeleceu com precedência em O segundo sexo: “Não se nasce
mulher, aprende-se a ser...”. Travestis, como os de Belo Monte, e cross-dressers, como Laerte, também
ensinam coisas profundas com o simples fato de, não tendo nascido mulheres, terem
aprendido a sê-lo: muito mais do que petinhos, e bundinhas, e bolsas, e colares
de contas: trata-se da potência de descerrar um outro mundo por detrás deste, feito de platitudes tediosas e ambíguas; trata-se de descobrir, sob a pele e sob um corpo que não aguenta mais, o obscuro e imanente universo do desejo, em que já não fará mais sentido perguntar “como
é seu nome?”, mas “quais são suas máquinas desejantes?”.
--
@_mdcc, para A Navalha de Dalí: <http://murilocorrea.blogspot.com>