"[...] se o
homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e
as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino [...]". Deleuze e Guattari
"O rosto é uma política", diziam Deleuze e Guattari. Nas formações sociais ocidentais modernas e contemporâneas, o Estado implanta uma máquina de rostificar ao lado do corpo social; máquina que se apodera dele, que o rostifica inteiramente, reduz corpos a rostos, singularidades a identidades. O rosto é, sobretudo, o análogo, no corpo, da divisão entre sociedade e Estado. O rosto aliena a potência de um corpo da mesma forma como o Estado aliena o poder do corpo social - poder que
as marchas das ruas nos fizeram redescobrir no mais profundo de nós mesmos. Segundo essa divisão, o corpo deve confinar-se ao privado; o rosto, porém, pertence ao público. Da mesma forma, a impotência remete ao privado (corpo inerme, rostificado), e o poder, ao Estado, que deseja eclipsar nas suas instituições a totalidade do espaço público, que permanece, como as ruas o provam, aberto, irredutível por definição, e jamais exclusivamente discursivo. Se, no espaço público, pudesse haver redução entre palavra e gesto, a palavra é que reconduziria ao gesto ou à ação. Pensar o contrário é, já, sintoma da eficácia dos poderes que convertem o corpo em rosto e os poderes que circulam no corpo social em monopólio do Estado.
Primeira operação: o Estado e sua máquina de rostificar tornam possível proibir ou criminalizar a dissimulação do rosto no espaço público sob argumentos muito convincentes, que nos fazem até mesmo desejar a sujeição de nossos corpos ao rosto que os poderes fabricam para nós. O Estado assinala e atribui a identidade unívoca de cada corpo e, reduzindo o corpo ao rosto, conjura a confusão das multidões indóceis, tenta anular o elemento ontológico e político irredutível que constitui sua potência específica: ser um corpo no qual nada se parece com um rosto; afinal, os primitivos cobriam-se de máscaras para atestar a pertença da cabeça ao corpo; nós, para desfazer o rosto e constituirmo-nos cabeças-pesquisadoras. Segunda operação: o Estado identifica mascarado e criminoso (segundo o léxico do poder, "se se esconde, é porque está devendo..."); serve-se da perversa naturalização da categoria do criminoso, pois, assim, pode-se negar-lhe direitos, capturando-o em um espaço exterior à lei - Amarildo, o pedreiro torturado, morto e "desaparecido" pela Polícia Militar do Rio não foi logo acusado de colaboração com o tráfico? Isso, "ser criminoso", não seria suficiente para justificar toda a ação ilegal da polícia? Capturado fora das leis que assinalam o hipócrita pacto social, o mascarado e o criminoso são, ao mesmo tempo, os sintomas mais superficiais da profunda crise desse pacto hipnótico. O efeito simbólico e político do "recurso ao pacto" é alienar toda possibilidade de pensamento ao código de suas razões, fazer-nos abdicar da crítica, que Foucault definiu como "a arte de não ser governado assim e a tal preço". Desfazer o seu próprio rosto, no Brasil de hoje, é resistir a abdicar da faculdade de pensar - não é nada fácil e implica o risco de ter, de novo, um corpo implicado na política.
Diante da eficácia da paz universal, que a polícia visa a assegurar mediante o uso da violência, como não apoiar que se revivifique a legislação da ditadura, se o mesmo Estado que cria uma identidade para os corpos identifica sua tática política com a categoria mendaz - mas praticamente eficaz - da subversão? No campo instável e aberto da desordem e da "subversão", como não ver que a polícia se torna o instrumento por excelência de governamentalidade para sobredeterminar situações fluidas, metaestáveis e de emergência? Isso porque a polícia, como as mídias e a videovigilância (seus aparatos técnico-sociais) são capazes de restabelecer o rosto, de reatribuir o rosto a quem ousou desfazer-se dele. Tudo o que coloca em xeque a ordem das coisas é violentamente conjurado. "A cada corpo, sua própria face" é a injunção do Estado. Nada de massas confusas, nada de corpos anarquistas e indisciplinados, nada de multidões sem rosto: mesmo fora de qualquer conceito de organização, o Estado continua a afirmar e enquadrar tudo o que ensaia sua fuga como organização "informal", disforme. Nesse caso, "Manifestação pacífica" coincide, ponto por ponto, com a abolição da política; coincide com os afetos da ordem, quando toda política é, no fim das contas, a possibilidade de criar uma outra ordem dos afetos. Toda ação política que combata a ideologia que aliena e sacraliza a violência como prerrogativa exclusiva de um Estado violento e de uma polícia assassina deve ser violentamente conjurado, pois desafia o Um, a sociedade dividida entre dominadores e dominados, ricos e pobres, exploradores e explorados, alienação do poder do corpo social ao Um transcendente do Estado.
Com Negri, e para muito além dele, o que define as multidões é a recusa ativa do rosto em proveito das singularidades irredutíveis de um corpo social criativo, múltiplo, anônimo, potente, inclassificável e incoercível. Nessa guerra de guerrilhas entre corpos indisciplinados e rostos despóticos, as máscaras podem desempenhar, ainda hoje, a função que tinham para os primitivos que, muito antes de Nietzsche ou de Foucault, conheciam a guerra como relação social fundamental. Como atestam Clastres e Sahlins, a função da guerra nas sociedades primitivas era a de conjurar o aparecimento da forma-Estado na chefia, da sociedade dividida, da conversão irracional de suas sociedades de abundância e de lazer em e sociedades-para-a-acumulação. Sociedades centrífugas, que perseveram no seu ser-para-o-múltiplo. O Estado e o rosto são os antípodas da política - antes uma máscara diabólica para assegurar uma cabeça bem atarrachada ao corpo. No Brasil, as ruas assinalam muito mais que uma acumulação primitiva de democracia; marcam, em coextensão com ela, a emergência de uma nova noção de espaço público, completamente emancipada do Estado e para além de sua métrica: desejo de desfazer o rosto, de multiplicar o múltiplo, de ser-contra-o-Um.
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