Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa
Quando
Paul Lafargue decidira tomar da pena para redigir O
direito à preguiça,
foi algo como um pastiche, uma espécie de provocação – como um
gesto de desafio irônico à ordem da produção que ele assistia
lentamente se consolidar ao redor de si mesmo. Cento e trinta anos
depois da publicação da segunda edição de seu libelo, porém, o
gesto realizado parece gozar de uma pertinência, de uma potência e
de uma urgência novas, maiores até mesmo que aquelas que foram as
suas, inicialmente. Isso porque enquanto a Europa, por conta da
inépcia de governos incapazes de compreender que a própria ideia de
austeridade é um insulto à inteligência (mesmo que ela fosse o que
os economistas defenderam antes de mudarem de opinião), afunda-se
sempre mais na morosidade, o direito defendido por Lafargue tornou-se
o insulto supremo. É verdade que o núcleo privilegiado desse
insulto, tal como se encontra formulado pelos cidadãos como pelos
decisores, pelos editorialistas como pelos intelectuais, jamais
dispusera de meios de defesa consideráveis – porque não se trata
de ninguém, mas do desempregado. Aos olhos do ethos
contemporâneo da austeridade, o desempregado tornou-se a incarnação
de uma espécie de obscenidade: já que o resto do mundo tenta se
virar para tentar garantir, com sua sobrevivência, também a
sobrevivência de uma economia oscilante, o desempregado não faz
nada além de tocar, com uma impecável regularidade – aquela de
toda administração – uma soma de dinheiro cuja justificação
suscita cada dia mais cólera. Ali, onde nós deveríamos unir nossas
forças e aceitar ir ao nosso trabalho como se se tratasse de uma
tarefa cívica, visando à restauração de não se sabe muito bem
qual ideal econômico arruinado, o desempregado é aquele cujas
jornadas são completamente estruturadas ao redor de um único
imperativo: nada fazer.
Se
se pode compreender que contadores, tendo tomado o lugar de nossos
governantes, veriam com maus olhos a hemorragia de auxílios fluindo
na direção de uma franja sempre mais importante da sociedade, é
triste constatar que isso se passa até mesmo com os trabalhadores, a
quem se faz crer que o sangue, assim derramado, é bombeado
diretamente de suas próprias veias. Além de essa explicação ser
falsa, ela se caracteriza pela mais alucinante, a mais nauseabunda e
a mais odiosa das más-fés : a de todos aqueles que pretendem,
para dissimular sua própria inépcia, introduzir uma divisão entre
aqueles que poderiam dar-se conta do que se passa. Deixar propagar-se
a ideia de que os desempregados são vagabundos que vivem das moedas
dos últimos contribuintes que mantêm nossa sociedade no reto
caminho de um capitalismo tornado sinônimo do grande banditismo não
é, com efeito, senão isto: uma enésima variação sobre o bom e
velho princípio que diz que é preciso dividir para reinar – e que
não pode haver reino que não suponha a divisão. Se o preferirmos,
apresentar os desempregados como ocorrências do pânico de uma
máquina de seguridade social que custa cada dia mais aos
«contribuintes» é uma maneira de deixar crer que existe, na
população de uma sociedade, duas categorias diferentes de cidadãos:
aqueles que pagam e aqueles que não. E os que não pagam, porque
custam ao invés de contribuir em um momento em que a ladainha da
diminuição dos custos se torna algo da ordem do credo, não parecem
mais estar à altura de fazer valer as razões de sua existência –
face ao heroísmo daqueles que pagam. Esses que não pagam não são
mais verdadeiros cidadãos, nem mesmo verdadeiros indivíduos: são
parasitas, indesejáveis, excedentes ou supranumerários. Bem assim,
pois, os desempregados: eles se tornaram o galho morto que conviria
podar para que aqueles que pagam possam, enfim, receber o fruto
natural de seu trabalho – como se governo nenhum jamais tivesse
agido nesse sentido.
Ao escolher
dividir sua população ao redor da questão do desemprego, os
governos dos países europeus sabem muito bem aquilo que fazem: eles
designam, recorrendo a uma linguagem moral (preguiça!), aquilo que
se pode chamar de bode expiatório. Eis aí, segundo eles, uma
maneira de se desincumbir de sua própria incapacidade de suscitar
aquilo a que, em seus discursos, não cessam de apelar – a saber,
com que preencher os caixas que eles esvaziaram de maneira conscienciosa no curso dos últimos decênios? Porém, sobretudo, é
uma maneira de reafirmar seu poder sobre as vidas daqueles de que
foram encarregados e, ainda, de reafirmar seu poder sobre as escolhas
pelas quais se deixa um indivíduo conduzir essa vida – isto é, de
reafirmar seu poder contra
a liberdade dos indivíduos em questão. Trabalhar deveria ser, em
uma sociedade digna, uma escolha deixada a todos e a cada um, assim
como deveriam ser escolhas as modalidades do dito trabalho (ou de sua
ausência) ; não uma espada contra o pescoço de cada um,
combinada com a ameaça latente de ser, um dia, tratado como
indesejável. Considerar os desempregados com indesejáveis torna-se,
na verdade, considerar que a vida não é uma questão de escolha –
ou, que se ela é uma questão de escolha, esta não pode operar-se
senão entre os itens de um catálogo magro como uma folha de papel:
aquele que define o que é um bom «contribuinte». Que nós
disponhamos de riquezas suficientes para assegurar a todo mundo uma
verdadeira liberdade de escolha, mais que perseguir aqueles que são
seu símbolo, teria, desde há muito, feito refletir os governantes
se a realidade do problema do desemprego fosse, de fato, uma
realidade financeira. Nós nos damos conta agora: trata-se muito mais
de uma realidade de poder – o poder de decidir a vida de cada um,
sem que seu próprio ponto de vista mereça ser levado em conta.
* Traduzido do original em francês: Laurent de Sutter, "Éloge des chômeurs" (no prelo).