"não se assuste, pessoa...", 2014
Arrastão.
– Quando Tom Zé publicou sua exegese
de Tô
ficando atoladinha, a
canção-anátema de Tati
Quebra-Barraco, as reações dos estetas formais da Moderna
Música Popular Brasileira foram agressivas
e imediatas.
Os adversários de Tom Zé acusavam
seu mais recente álbum, Estudando a bossa nova,
de conter “injustificáveis
influências do funk
carioca”. Quando Tom Zé
justificou
não ver ali nenhuma contradição, pois o
funk carioca teria
sido “uma
das ondas concêntricas desencadeadas pela bossa nova”, as
reações foram ainda mais hostis.
Era 2008, e
o funk abandonava seu
círculo tradicional para cair de
uma vez por todas no gosto
popular.
Enquanto
a internet e a democratização da cultura do compartilhamento subiam
o morro promovendo novas
formas de invenção e acesso à cultura,
o “som de preto, de favelado” que “quando toca, ninguém fica
parado”, descia e invadia o
Rio com a força de um fluxo novo,
vencendo as resistências que
os sambas de Janet de Almeida – a autora de Eu
sambo mesmo e Pra
quê discutir com madame? –
haviam imortalizado. Mais
tarde, na voz de João Gilberto, os sambas de Janet de Almeida, que
ridicularizavam a eugenia musical da elite brasileira com ironias tão
finas quanto contestatórias, encontrava eu híbrido em ritmo de
bossa. Como o DJ
Malboro, com seu som
de preto e de favelado, não seria uma das vagas desencadeadas
pelo samba e pela sua progressiva assimilação social? Tom
Zé talvez ignorasse, mas sua exegese de Tô ficando
atoladinha foi
mais que a protagonista de um
mero choque
de gosto; foi
a exposição radical do
preconceito de classe que continua
a atravessar a Moderna Música
Popular Brasileira e que se
dissimula sob o verniz do cultivado.
Quando
Tom Zé – o inventor da
estética do
arrastão em Defeito
de Fabricação
(1998) – afirmava a
congenialidade entre o
“metarrefrão
microtonal e plurisemiótico” de To ficando atoladinha
e a bossa nova, foi como
um golpe triplo:
(1) denunciar a função
política exercida
pelo canto gregoriano na
naturalização das escalas – que, de microtonais, passavam a ser
diatônicas; (2) restaurar a
dignidade da escala microtonal, demonizada pela forma estética imposta
pela Igreja Católica; (3)
atestar, na microtonalidade,
a origem comum da bossa nova e do funk carioca.
Esse gesto, antiplatônico,
desterrava as hierarquias consolidadas; proclamava a verdade
demoníaca que o funk
só poderia ter herdado, na espiral do tempo, precisamente do que
havia de mais refinado e cool
na recente história da música popular brasileira: a microtonalidade
dissonante da bossa, produto de furto e objeto da reinvenção da
estética do arrastão dos pretos e favelados.
Por
dentro. – O
rolezinho está para o shopping center assim como
o
funk
ostentação
está para a bossa nova. Dois
agenciamentos cujo horizonte de aparição assume
a forma efêmera do choque de
gosto, mas oculta,
sob sua superfície, uma renovada emergência da luta de classes, e
ali onde menos se espera:
nos modos de consumo
da cultura. Tudo
se passa sob o signo da contradição e do imaginário dialético: é
a ralé do rolê
contra os mauricinhos de rolex;
as tchutchucas de shortinho
e chapinha no cabelo contra
a Garota de Ipanema. Porém, em 2013, a filha da Garota de Ipanema dançou o quadradinho de 8. Assim
como o funk é o filho
bastardo
da microtonalidade da bossa nova, o
rolezinho
é o filho monstruoso do
shopping center.
Congenialidade analógica:
talvez não seja por simples acaso que quando pobre resolve dar um
rolê, na praia ou no shopping, seu passeio, no léxico do poder,
vire logo arrastão –
não há outra forma estética possível senão confrontar o legítimo
com o bastardo e o doente de normalidade com a força do monstruoso.
Todavia,
sob toda equivalência
em diagonal (funk/bossa;
rolê/shopping), há
uma
inequação insuspeita. Ela
se confunde precisamente com a diferença que ultrapassa os termos
“legítimo” e “bastardo”, “normal” e “monstruoso” e,
no seio de sua congenialidade, atesta sua diferença recíproca.
Basta perguntar
a qualquer segurança de shopping,
ou policial: há uma diferença entre o maloqueiro e o mauricinho,
entre a ralé e o rolex,
que é fenomenológica, eugênica –
pois a questão racial é flagrante –,
mas também política.
Há
uma moda mauricinho, uma forma exterior de aparição, uma
codificação dos hábitos e dos gestos, como há
uma estilização
maloqueiro: boné,
bermudas enormes, camisa polo, correntes, óculos de sol, celular na
mão... sob um choque de gosto, um choque de signos, de regimes de
signos incompossíveis para o capital. Na
superfície das formas de consumo da cultura, o
encontro intensivo entre formas de vida diferentes em um espaço que
tem se tornado cada vez mais comum no Brasil: o do consumo e
o do valor social do consumo: a ostentação.
A
ostentação é o “por dentro” do rolezinho, o
gesto de pertença a um mundo que não é o seu –
o signo da “invasão” por
excelência. Porém, mais a fundo, a ostentação encerra a
apropriação de uma forma de relação social mediatizada pelos
objetos e sua conversão em mote político.
Querer o que os mauricinhos podem ter, com outro corpo, outra pele,
outra história e outro modo de existência, revela um potencial de
liberação de uma forma desejante que nem pode se realizar no
mercado, nem parece – como as liminares judiciais e
confrontos policiais recentemente comprovaram – poder
ser contida por ele. O
mauricinho está curtindo
por dentro. O maloqueiro “zoa” no shopping
porque está curtindo por
dentro e contra.
…
e contra. – Em
uma entrevista no fim de sua vida, Deleuze afirmava que “Direitos
Humanos” eram coisa “de
intelectuais sem ideias próprias”; que a verdadeira filosofia
do direito era a jurisprudência. A
afirmação de Deleuze não deveria causar mais espécie do
que as práticas estatais de segurança pública e manutenção
militar da ordem. Seja como for, procuremos compreender a
polêmica – e quase sempre
mal-compreendida –
afirmação de Deleuze sobre os direitos humanos. O
aparente menosprezo de Deleuze pelos direitos humanos não deve ser
confundido com sua proscrição ou inutilidade. Está
vinculado, antes, à denúncia dos compromissos vergonhosos que se
utilizam da forma jurídica para combater precisamente aqueles a quem
o direito deveria proteger. Abstrações metafisicas, construídas
sobre uma antropologia evanescente como
Auschwitz teria comprovado de uma vez por todas, os direitos humanos
não podem significar nada senão uma gramática de luta e defesa de
direitos, como quisera Douzinas, ou, então, uma retórica
de difusão dos valores do Império, como quiseram Negri e Hardt.
Todavia,
sobre os direitos humanos, Deleuze não compartilha nem o otimismo
vigilante de Douzinas, nem a crítica veraz de Hardt e Negri. O
bergsonismo de Deleuze implica que o direito, e uma filosofia do
direito, só possam
constituir-se em relação com um campo problemático concreto; isto
é, em correlação com
um universo de singularidades reais contra o qual se debate um povo
que se inventa em
busca de uma nova terra. Os
direitos humanos, abstratos e
descarnados, são mesmo, como quisera Deleuze, assunto para
“intelectuais sem ideias próprias”. Porém,
no terreno singular de lutas em que se constituem e inventam, são
produtos de uma filosofia do direito que se confunde com a
jurisprudência, constituídos por prolongamentos sutis e embates,
procedem por criação.
Sob
essa luz, black blocs e os
jovens do rolezinho
são os maiores filósofos do
direito de que o Brasil teve
notícia nos últimos anos. Eles
inventam direitos, cada um a sua maneira, contra o Estado e contra o
mercado, e o fazem
concretamente, questionando a
repartição entre os ilegalismos lícitos e os ilícitos. Dia 11 de janeiro de 2014, o Shopping JK Iguatemi –
um dos mais luxuosos centros comerciais da cidade de São Paulo –
obteve uma decisão
liminar que impedia a realização de um rolezinho
em suas dependências físicas, com apoio não apenas de sua
segurança privada, como das
polícias Civil e Militar).
O conteúdo
da decisão liminar, concedida por Alberto Gibin Villela, não é
outro, senão o apelo a
“direitos fundamentais” vazios e abstratos: “A Constituição
Federal estabeleceu direitos fundamentais a todos. Esses direitos
importam também em obrigações a cada um, que tem o dever de olhar
a sua volta para avaliar se a sua conduta não invade a esfera
jurídica alheia.
O Estado não pode garantir o direito de
manifestações e olvidar-se do direito de propriedade, do livre
exercício da profissão e da segurança pública. Todas as garantias
tem a mesma importância e relevância social e jurídica.
”
O
menosprezo aparente
de Deleuze pelos direitos humanos, que não passava de uma recusa a
colocar o problema da filosofia do direito à
moda tradicional, abstrata,
caberia também aqui. Toda a questão da filosofia do direito se
esgota na invenção política de direitos, em sua afirmação em
tensão com uma singularidade concreta que não pode ser
contida nas teorias de
direitos fundamentais ou nas colisões de princípios. Com
razão, ao mesmo tempo em que Deleuze afirmava que “a
jurisprudência é a verdadeira filosofia do direito”, dizia “ela
não deveria ser confiada aos juízes”.
Já
é tempo de abandonar as concepções ideais
sobre o direito e de perceber
que as operações jurídicas
criam
pedaços de real em
que podemos viver, circular, consumir, que são interditados e
que se transformam em campos
de batalha. Toda operação jurídica é – como a liminar do caso
JK Iguatemi atesta, apesar de toda
a sua obscena atecnica –
uma ontologia política que se confunde com a invenção de direitos.
O grande direito que está
por ser inventado no Brasil
contemporâneo, e que é
afirmado heterogeneamente nas táticas black blocs e nos rolezinhos,
contra o Estado e contra o capital, é o direito ao
rolê, à
circulação insujeita dos corpos –
no espaço público como no privado. Invenção
de um Fora do Estado e do mercado que começa a se replicar por todo o país. Invenção política de um outro
mundo possível. Se, por ora,
não há outro mundo para além ou para fora deste, o rolê é o
gesto político contestatório por excelência: por dentro e contra –
plano em que a estética quase-oswaldiana do arrastão, de Tom Zé ("Só me interessa o que não é meu"), reencontra
a aquela mesma galera
que, como na Tropicália,
só quer sair, se
divertir, dar um rolê. Rolê
é amor: da cabeça aos pés. Dê um rolê.