Para ler "MundoBraz", de Giuseppe Cocco

27 setembro, 2010


“Não páro de fugir, mas ao fugir, procuro uma arma”.
George Jackson.

Há alguns dias, um querido amigo, Luiz Otávio Ribas, perguntava-me se no tempo de Foucault era impreterível ler Marx e Freud, o que seria necessário ler hoje? Não lhe respondi naquela ocasião, mas arriscaria dizer que, se no tempo de Foucault, Deleuze lia Marx e Freud monstruosamente, hoje me parece imprescindível que leiamos Antonio Negri e Giorgio Agamben - mas como convém: diferente e monstruosamente...
Acabo de terminar um dos livros mais interessantes que li nos últimos tempos. MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo, de Giuseppe Cocco (2009), é acachapante: bonito, fluido, positivo e múltiplo; tão múltiplo que qualquer tentativa de resenhá-lo seria uma brutalidade à qual não me sinto disposto. No entanto, algo me chamou à atenção nesse livro. Em verdade, eu nunca li sequer um livro de Viveiros de Castro; tenho de confessar minha ignorância antropológica e brasilianista que, paulatinamente, deverá ser corrigida após ter lido o belíssimo MundoBraz, de Cocco.
Encontrava-me às voltas com a escritura de um artigo que tinha por pano de fundo as relações entre o conceito ocidental de homem e a máquina antropológica de Giorgio Agamben; em um fim de semana, (meio sem querer, como ocorrem os bons encontros) caiu em minhas mãos MundoBraz, que anunciava a continuidade da discussão iniciada em Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina globalizada, escrito por Cocco e Negri (2005) e, ao mesmo tempo, dedica a terceira parte do texto a discutir exatamente as máquinas antropológicas do Ocidente. Sequer pude esperar chegar em casa; li o trecho na livraria mesmo e, após ter terminado, comprei-o.
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É natural que um cientista político tão influenciado por Deleuze e Negri, como Cocco, discorde abertamente da filosofia política de Giorgio Agamben, e tenda a ver nela unicamente negatividade. Por gostar tanto de Deleuze, eu mesmo tive uma certa resistência a Agamben em 2008, e levei dois anos para desconstruí-la. Está claro que o conceito de biopolítica de Agamben é estritamente negativo e, por isso, parece entrar em choque com a leitura negriana de biopolítica em sentido positivo como antropofagia, hibridização, mestiçagem ou heterogênese – como a política de uma vida... que resiste, que flui, que vaza e se liquefaz, e pode, sempre mais, fugir aos aparelhos de captura.
Talvez um dos primeiros pontos de desconexão entre Negri/Hardt/Cocco e Giorgio Agamben esteja na aparente impossibilidade deste último em admitir uma leitura positiva do conceito de biopolítica como biopotência, como potência de variação das formas de vida. Entrevendo a vida nua como signo de uma vida impotente, esmagada pelos dispositivos ou aprisionada em suas ruínas, Cocco – a exemplo de Pelbart – compreende uma política agambeniana de desativação da máquina antropológica como um empreendimento essencialmente negativo; Cocco, aliás, é um excelente leitor de L’Aperto: l’uomo e l’animale (Agamben, 2002), e detecta na noia profonda e no projeto de "suspensão da suspensão" a ontologia negativa heideggeriana que serviria de canevás metafísico para a filosofia  política de Agamben. Assim, a afirmação da vida nua estaria resumida à afirmação de uma impotência.
Por outro lado, Cocco critica abertamente a apropriação agambeniana do conceito de biopolítica de Foucault, sendo certo que Foucault não o teria tomado, originalmente, em uma acepção unicamente negativa. Isso explicaria, por exemplo, por que o conceito de bíos aparecera em seus últimos cursos (1982-1984) como estética da existência, como potência de variação das formas de vida.
Apesar de Cocco expressar concordância com as linhas gerais da operação de um dispositivo antropológico, como assinalado por Agamben, a partir especialmente de Michel Serres e Descola, Cocco critica a distinção moderna entre natureza e cultura, endereçando a Agamben uma pesada e procedente crítica devida à anistoricidade de sua descrição do dispositivo antropológico do Ocidente – ponto em que a antropologia contemporânea poderia ser de grande valia.
A crítica agambeniana do dispositivo antropológico nos levaria, de acordo com a detecção de Cocco (2009, p. 178), a dois impasses: o primeiro, relativo à ontologia negativa, heideggeriana, que Agamben mobiliza; o segundo, referente à redução do conceito de biopolítica de Foucault à tanatopolítica, o que implicaria ver na morte uma potência unicamente negativa, simplificando a relação entre vida e morte. A linha de fuga utilizada por Cocco para compreender a morte traz como intercessores Jacques Derrida (sobre a morte de Emmanuel Lévinas), Peter Sloterdijk (e seu adeus a Derrida), Deleuze-Guattari e Viveiros de Castro, dentre outros.
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  Sem que isso signifique tirar um pingo sequer da dignidade filosófica dessa infinita e atualizada caixa de ferramentas práticas que é MundoBraz, de Giuseppe Cocco, endereçaria duas observações que me parecem em aberto e, por isso mesmo, capazes de pôr em xeque a leitura que Cocco devota a Agamben.
(a) A primeira delas atrela-se a uma necessidade de utilizar Agamben, mais do que de simplesmente aceder a ele. Agamben é um filósofo nômade, um flanêur – já o dissera Raúl Antelo –, e, como tal, transita entre a política, a economia, os processos de subjetivação-dessubjetivação, as artes, a estética, a teologia, os dispositivos soberanos, governamentais e outros, deixando armas pelo caminho. Assim, podemos lê-lo, usar dele, tomá-lo para fazer nossas pequenas guerrilhas, sem rechaçar sua filosofia política pela anistoricidade ou pela aparente negatividade de sua ontologia.
Acredito que Cocco reduz a filosofia política de Agamben a dois impasses e a um projeto vazio, de desativação, de “suspensão da suspensão”, lendo “O Aberto” agambeniano como uma repetição nua do conceito heideggeriano homônimo. Caso a leitura de Cocco realize essa diferenciação, ao menos em MundoBraz, ela não é plenamente esclarecida. Os “deleuzianos” – com o perdão da expressão, francamente inadequada – sabem que um conceito é um acontecimento, uma singularidade. Não se pode reduzir a ontologia de Agamben a um projeto heideggeriano negativo; caso contrário, será forçoso pensar que Agamben teria buscado, durante todos esses anos, uma filosofia política própria apenas para repetir nuamente um de seus mestres, Martin Heidegger. Ainda que essa fosse a sua intenção, o plano de imanência traçado por Agamben é completamente outro e irredutível ao plano de consistência que um Heidegger logo transforma em plano de organização.
Ainda, parece que a leitura de Cocco precisa fazer-se integrar por um conceito que, em Agamben, parece ser pontual, mas não é: o conceito de potência. Ao trabalhá-lo em La potenza del pensiero,  o filósofo italiano compreende toda potência como sustentada – não por uma impotência, mas – por uma potência de não. Mesmo o escuro e as trevas, da operação das off-cells, nunca são compreendidas como a ausência de luz, mas como uma potência de não ver – índice virtual puro sem relação com o ato. De sorte que o conceito de desativação da máquina antropológica, bem como a ontologia de Agamben e o conceito de vida nua, não podem resumir-se a um simples vazio constitutivo, ou a uma vida entregue à morte, mas devem ser lidos sob o critério unificador do conceito de potência de não – precisamente, aquele do Bartleby, de Mellville: “I would prefer not to...”. A metáfora da escuridão que, na literatura de Agamben, ganhou recentemente uma abertura cosmológica, é muito mais que simplesmente uma metáfora: é um conceito fundamental que atravessa por toda a sua filosofia política.
Potência não como impotência, mas como suspensão do ato; suspensão do ato sem negatividade, mas como um índice positivo, unicamente virtual. Em Agamben, não há uma repetição de Heidegger, mas seu uso; a aparente negatividade da ontologia de Agamben é a negatividade que provém do dispositivo antropológico em obra na cultura ocidental, não do programa da filosofia política de Giorgio Agamben, que não pode ser compreendida senão como potenciação, virtualização, multiplicação de armas – como fica claro no conceito de profanação como o ato de cancelar as separações e as capturas operadas pelos dispositivos, restituindo um objeto fora de uso ao uso comum dos homens; isto é, a uma completamente nova possibilidade de usar.
Por fim, o conceito de vida nua, em Agamben, é ambíguo. Não significa unicamente uma vida como capturada por um dispositivo e objeto de uma exclusão-inclusiva, uma forma de vida unicamente impotente (uma forma de vida separada daquilo que uma vida... pode), mas também constitui uma vida que poderia ser afirmada positivamente na nudez de sua forma. Um dos índices de positividade da vida nua encontra-se escondido em Homo sacer I: “fazer do próprio corpo biopolítico, da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma forma de vida toda vertida na vida nua, um bíos que é somente a sua zoé” (Agamben, 2007, p. 194). Foi essa ambiguidade interna do conceito de vida nua que tentei desentocar em uma resenha sobre L’immanenza assoluta e em um pequeno ensaio, Da vida nua à vida como obra de arte: um devir-imperceptível.
(b) Ainda, e esse é o segundo ponto que gostaria de destacar acerca da leitura de Cocco, sustento a hipótese de que não há qualquer incoerência em Agamben apropriar-se do conceito de biopolítica e transformá-lo em tanatopolítica. Sem dúvida, Cocco tem razão ao detectar que se trata de uma redução prática, mas uma redução que poderia ser entrevista como a tentativa de descrever um segmento de agenciamentos concretos em que os dispositivos biopolíticos encarnam-se, ou poderiam encarnar-se, desde os gregos e também hoje.
Não deveríamos criticar um filósofo por apropriar-se dos conceitos dos outros e modelá-lo conforme sua conveniência, desde que o faça com sinceridade filosófica, como Agamben faz. Esse é o  gesto, ou o procedimento filosófico, deleuziano da "imaculada concepção", ou – dito por meio de um equivalente – “enculée” (literalmente a “enrabada”, dizia Deleuze: é como “pegar um autor por trás e fazer-lhe um filho monstruoso e, no entanto, dele”).
Ao contrário de lançar Agamben à negatividade aparente deu seu Heidegger, talvez pudéssemos esforçar-nos, e até mesmo trair Agamben, para retirá-lo dela. Poderíamos esforçar-nos por compreender a apropriação da biopolítica foucaultiana como tanatopolítica, por Agamben, como um segmento coextensivo à apropriação da biopolítica como biopotência (em sentido positivo), por Negri, Hardt, Lazaratto e Cocco; ambas não passam de segmentos; de armas que esses filósofos, como nômades, legam-nos ao deixá-las caírem ao léu; armas de que podemos nos servir para engendrar outras – tantas, belas e impossíveis! – imaculadas concepções.

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Quando o corpo político vira corpo criminal: mais um não à biometria

16 setembro, 2010

 

Croquis de crânios de delinqüentes; 
pelo Dr, Vans Clarke, diretor de prisão. In: (LOMBROSO, 1895)


"No dia em que o controle biométrico seja generalizado e em que a videovigilância seja instalada em todas as ruas, toda a crítica e toda a dissidência serão impossíveis". (Giorgio Agamben, Não à biometria).

1 Kelsen afirmava em Teoria Geral do Direito e do Estado que, de um ponto de vista do dever estritamente jurídico, o sujeito destinatário da ordem jurídica não seria mais do que “um delinqüente em potencial”. A biometria dá a Hans Kelsen uma oportunidade para reencarnar nos sistemas burocrático-administrativos do direito positivo atual. Sob a égide dos Estados contemporâneos de Direito, com seus dispositivos de segurança e garantias tanto mais numerosos quanto mais ineficazes, falíveis, manipuláveis e, no entanto, incontornáveis, os corpos físicos dos cidadãos deixam de ser os corpos disciplinares para se tornarem o ponto de imputação privilegiado dos dispositivos de governamentalidade.

2 Não é de todo desprezível o fato de que, hoje, no Brasil, ninguém possa renovar sua habilitação para conduzir automóveis sem antes passar por um cadastro biométrico, em que são escaneados os cinco dedos de cada uma das mãos. Dispensa-se até mesmo a assinatura pessoal do condutor, que só estampa as habilitações porque nelas parece ser necessário reservar um lugar para o sujeito daquele corpo.
Também não se deve menosprezar o fato de que toda uma campanha publicitária realizada pelo Superior Tribunal Eleitoral destinou-se, até agora, a emitir signos que têm por exclusivo propósito identificar os significantes “biometria = segurança”, ou “biometria = transparência”, eleitorais. 
O Tribunal Superior Eleitoral, desde as primeiras experiências com as urnas biométricas ocorridas nas eleições municipais de 2008, condicionou expressamente por resolução o exercício do direito constitucional ao sufrágio ao recadastramento biométrico de todo eleitor com domicílio eleitoral nos municípios-sede em que ocorreriam os primeiros testes. Em 2010, não será diferente
O Tribunal Superior Eleitoral prevê que, até os anos de 2016 ou de 2018, todas as eleições brasileiras sejam realizadas com utilização da identificação biométrica dos eleitores.
slogan da implementação das urnas biométricas no Brasil (“cada vez mais, o poder está na mão do eleitor”) atesta a duplicidade da subjetivação-captura operada pelo dispositivo de controle: pretende-se garantir a segurança dos processos político-eleitorais ao efetuar-se uma identificação sem precedentes entre homem político e um corpo biológico que só pode ser o dele. As urnas biométricas são o dispositivo técnico que, contemporaneamente, permite entrever a identificação sem resíduos que o Estado promove entre corpo biológico dos homens e as prerrogativas políticas inerentes à cidadania. A subjetivação cidadã e corpo biológico dos homens fazem um no corpo a corpo dos cidadãos com o dispositivo eleitoral biométrico.

3  Cesare Lombroso foi um dos mais célebres precursores daquilo que, anos depois, viria a ser nomeado “antropologia criminal”. Originalmente, a disciplina lombrosiana destinava-se a identificar, organizar e classificar os traços fenotípicos comuns à face e à compleição corpórea do “délinquant-né” (delinqüente nato). Em L’homme criminel. Étude anthropologique et psychiatrique (1895), croquis identificavam uma variada gama de elementos estruturais e de traços do criminoso natural, que iam desde o formato dos crânios até a dimensão de seu campo visual médio.
Atualmente, quando a criminologia passa a compreender o crime como um fenômeno biopsicosocial complexo, valendo-se da bioantropologia, mas também da criminologia sociológica, já não se pode afirmar, com a falaciosa certeza lombrosiana, quais os caracteres constituintes dos "criminosos por natureza". Diante desse saber-poder bem estabelecido, o Estado utiliza a biometria como aparato técnico e dispositivo que reduz o cidadão a uma identidade morfológica de raiz biológica.  Desde Lombroso, os procedimentos biométricos não eram aplicados à totalidade dos cidadãos, mas apenas aos delinquentes.

4 Atualmente, segundo Giorgio Agamben, a extensão e a generalização dos dispositivos biométricos e sua universal presença em espaços públicos como escolas, aeroportos, departamentos burocráticos etc., importaria reconhecer que todo cidadão tornou-se, aos olhos do Estado, um criminoso, ou um terrorista, em potencial. A maior prova disso – atesta Agamben durante a apresentação de um dos livros de Tiqqun -, encontrar-se-ia no fato de que todo homem que não se sujeita, ou denuncia, a aplicação dos aparatos biométricos pelo Estado aos cidadãos, é tratado como terrorista.

5 Brevemente, em 03 de outubro de 2010, a maior parte dos brasileiros votará ainda nas urnas eletrônicas tradicionais. Pela primeira vez, no entanto, o eleitor deverá comparecer à seção com o título de eleitor e um documento com foto. Pequenos municípios brasileiros, desde as eleições municipais de 2008, vêm testando as urnas biométricas. Tal dispositivo de controle e segurança já sofre críticas que vão da violação da garantia ao sigilo da votação à ineficácia técnica da garantia contra fraudes. Ainda assim, o aparato biométrico é vendido pelo próprio TSE como uma das resultantes da “revolução digital”.

6 Ao identificar o sujeito político exclusivamente por meio de seu próprio corpo, a identificação biométrica traz à luz aquilo que, desde os gregos, é, segundo Giorgio Agamben, o princípio de inscrição da doçura natural da vida nua (biológica) no seio do político, ao mesmo tempo em que essa mesma vida – nua, natural – é excluída da política; desse processo, em nosso sistema representativo, resta sempre o eleitor: um sujeito vazio, mas “seguro” e, sobretudo, passível de controle e identificação no campo aberto e perigoso da política.
Seu corpo biológico, que antes não compunha o cadastro eleitoral, é interiorizado, agora, pelo cadastro biométrico. Coextensivamente à identificação sem resíduos entre eleitor - sujeito político por excelência das democracias representativas - e corpo biológico individual dos cidadãos, produz-se a identificação entre cadastro eleitoral e cadastro biométrico. Assim, a biometria parece dar um passo adiante na concretização da clássica imagem da associação política hobbesiana: a imagem do Leviatã já não se faz unicamente de corpos, mas também de dados biométricos desmaterializados de cada cidadão, em nome dos quais nossos puros corpos subjetivados continuam sujeitados a uma política impotente, porque reduzida ao corpo a corpo entre homens e aparelhos de captura publicitário-eleitorais.


Campanha pelo recadastramento biométrico 2010
TSE: "cada vez mais, o poder está na mão do eleitor" - literalmente...




O que é biometria?



Giorgio Agamben: "Não à biometria"

14 setembro, 2010




Giorgio Agamben. Non à la Biométrie. Le Monde diplomatique. Decémbre 6, 2005. Fonte: EGS.

[arquivo] - Quando no fim do século XIX, Galion começou as suas pesquisas sobre as impressões digitais na Inglaterra, e Bertllon, na França, inventou a fotografia judiciária para a identificação antropométrica (termo da época), tais procedimentos estavam reservados exclusivamente para os criminosos reincidentes.
Hoje em dia perfila-se uma sociedade em que se propões aplicar a todos os indivíduos dispositivos que estavam, até ao momento, destinados aos delinquentes. Segundo um projecto que está em vias de ser aprovado a relação normal do Estado para com aqueles que Rousseau chamava os «membros do soberano» será a biometria, ou seja, a suspeita generalizada.
À medida que os indivíduos, sob a pressão da crescente despolitização das sociedades pós-industriais, se abstém de toda a participação política, cada vez mais são tratados como virtuais criminosos. O corpo político torna-se assim um corpo criminal.
Os perigos de uma tal situação são evidentes para todos salvo para aqueles que se recusam de ver. Já não bastou que as fotografias retiradas dos bilhetes de identidade e das cartas profissionais tivessem permitido às polícias nazis, dos países ocupados, identificar e registar os judeus e enviá-los para a deportação. O que é que se vai passar no dia em que um poder despótico disponha do registo biométrico de toda uma população?
Ora isto é tanto mais inquietante quanto os países europeus, depois de terem imposto o controle biométrico aos imigrantes, aprestam-se agora a impô-lo a todos os seus cidadãos. As razões securitárias invocadas a favor destas práticas odientas não se mostram convincentes pois que, se podem contribuir para impedir a reincidência, elas mostram-se inúteis para prevenir o primeiro delito ou um acto de terrorismo. Em contrapartida, ela são perfeitamente eficazes para o controle massivo dos indivíduos. No dia em que o controle biométrico seja generalizado e em que a videovigilância seja instalada em todas as ruas, toda a crítica e toda a dissidência serão impossíveis.
Os jovens estudantes que destruíram no passado dia 17 de Novembro os dispositivos biométricos na cantina do liceu de Gif-sur-Yvette mostraram, antes do mais, que se preocuparam bem mais com as liberdades públicas e a democracia do que aqueles que aceitaram e consentiram na instalação daqueles dispositivos.
Exprimo toda a minha solidariedade aos estudantes franceses e declaro publicamente que recusarei sujeitar-me a todo o controle biométrico e que, por isso, estou pronto a renunciar ao meu passaporte bem como de todo o documento de identificação.

Ensaio: "As teias da subjetividade contemporânea"

12 setembro, 2010


"Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas".
Gilles Deleuze.


[Ensaio] - A Biblioteca Online de Ciências da Comunicação, da Universidade da Beira Interior (BOCC/UBI), localizada em Covilhã, Portugal, acaba de publicar um pequeno ensaio que escrevi sobre a os processos de subjetivação contemporâneos. Não se trata de um trabalho exaustivo - nem se pretende como tal -, mas de uma tentativa de cartografia possível no seio dos atuais processos de subjetivação-dessubjetivação. Seu mérito, talvez, esteja na tentativa de descrever uma certa continuidade entre a disciplina, a norma, dispositivos de segurança e biopolíticos nas sociedades de controle a partir de entrecruzamentos conceituais de Foucault, Deleuze e Agamben.


Resumo: o presente ensaio visa a elucidar as relações, por vezes tênues e imperceptíveis, que fazem enodar sujeito e direito; e, contemporaneamente, busca entender essas tramas como uma relação com o irrelato. Isto é, o direito contemporâneo, no estado de exceção, e na topografia do campo, promove a perda do sujeito. Os modos operativos e os mecanismos de sujeição contemporâneos são, precisamente, o que constitui nosso objeto: buscar identificar as formas pelas quais os limites são sempre deslocados, fazendo a legalidade perder o sentido, e o sujeito, fabricado como sujeitado, ser entregue a seu próprio abandono. Procedemos, ainda, a uma releitura da categoria de vida nua, de Agamben, buscando identificar, a partir disso, o estatuto de objeto a que os sujeitos acedem pelo gozo. Ainda, traçamos a continuidade entre um modelo orgiástico-policialesco foucaultiano, modelo de inclusão, a um modelo de inclusão-exclusiva: o estado de exceção agambeniano, que não prescinde do normal e do disciplinar, mas reduz o homem a seu suporte animal, biológico, prescrevendo-lhe, pela acessão ao gozo, que assume formas disciplinares e normalizadoras, a virtual impossibilidade de cuidar de suas parcelas subjetiváveis, de sua potência de ser sujeito. Por fim, analisando o jogo estudioso de Agamben, buscamos, ali, uma proposta profanadora, subjetiva, pelo pensamento: uma forma de sair do campo, de encontrar a potência criativa para o novo no direito.

Palavras-chave: Sujeito; Contemporaneidade; Vida nua; Mesmo; Norma; Disciplina; Gozo; Sujeição; Norma-total; Restos subjetiváveis; Jogo estudioso.



* Para ler o texto na íntegra, na tela, basta clicar abaixo em "continuar lendo..."


Foucault leitor de... O anti-Édipo, de Deleuze & Guattari

08 setembro, 2010


Por que ler Foucault hoje?

"O sagrado, eis o inimigo"
(Paris, Maio de 68).


"Introdução à vida não-fascista" é um dos textos mais belos da bibliografia de Michel Foucault. Escrito ainda sob a influência das efervescências e do êxtase do imaginário político do maio de 1968 – o ano que, entremeado a “cinco anos de júbilo, cinco anos de enigma” parece fazer transcorrer ainda hoje rios de conceitos e resistências. Em seu fundo, soçobra a radical negação em ler o Anti-Édipo deleuze-guattariano como a teoria totalizadora, universal, tranqüilizadora que viria libertar-nos da inquietude de anos tão turbulentos. Por isso, Foucault afirma que não se trata de “um Hegel pomposo”. Foucault atesta o desejo intumescido e enfiado política adentro, assim como o palavrão pode ter uma força expressiva renovada na construção de um conceito. Ainda, testemunha a incandescência que parecia suficientemente potente e incendiária para ser, como quisera Deleuze, mais marxista que o próprio Marx e, ao mesmo tempo, freudiano como nem mesmo Freud teria sonhado. O Anti-Édipo parece dizer aos psicanalistas e semiólogos do desejo: é um contra-senso obrigar um desejo que deseja agenciar-se, ramificar-se, produzir-se, dançar sobre os divãs dos consultórios, a falar, interpretar e a sonhar a transparência enevoada dos símbolos reduzidos a uma linguagem que é falta, decadência, cansaço, comiseração e culpa. Desejamos o cansaço, mas só sob a forma de um esgotamento feliz, capaz de fazer desejar mais... ainda. Mas o Anti-Édipo, Foucault bem sabe, vai além: repetindo o gesto de uma ética profundamente espinosana, de intensidades puras sem sujeito, teríamos encontrado a tarefa máxima de liberar o próprio desejo dos fascismos quotidianos. “Todos temos poder nos corpos e fascismo na cabeça”, costumava dizer Foucault; é precisamente isso que uma ética como a do Anti-Édipo espreita, minucia, denuncia e testemunha. Ser anti-Edipiano teria se tornado quase uma forma de vida que se vigia, uma especial forma de prudência que prescreve, como interpretado pela pena de Foucault: “não caia de amores pelo poder”. Ler Foucault, hoje, tornou-se mais do que um prazer, uma urgência – nem que seja para ficar à espreita dos micro-fascismos que, como diria Espinosa, diminui-nos a potência e a liberdade. Eis o signo máximo de uma ética que já não apela ao dever ou à má-consciência, mas ao desejo e à liberdade.


Introdução à vida não-fascista
Michel Foucault

      [arquivo] - Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos – e significantes – com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
        Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes – a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa – a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas – retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
        Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
        O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.
       Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica  (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo.  Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
        Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.
        1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
        2) Os lastimáveis técnicos do desejo – os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
        3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do Anti-Édipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.
        Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.
        Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista.[1]
        Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
        – Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
        – Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
        – Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
        – Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
        – Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
        – Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
        – Não caia de amores pelo poder.
        Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.

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[1] Francisco de Sales. Introduction à la vie devote (1064). Lyon: Pierre Rigaud, 1609.
 * Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.

O que é o ACTA? E o Brasil com isso?

06 setembro, 2010


 Advertência
Este artigo nasceu das intervenções que fizemos no curso de uma troca de mensagens entre membros d’O pensador selvagem. Agradecemos a Rafael ReinehrCamila S. e Rodrigo Cássio, cujas participações possibilitaram que este texto viesse à luz. Em um momento em que as discussões sobre o Acordo Comercial Anticontrafação desintensifica-se na internet e, especialmente, na blogosfera, acreditamos que o período eleitoral que atualmente transcorre no Brasil – com sorte – poderia servir à compreensão da extensão formal dos propósitos do ACTA, bem como de suas limitações diante do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente naquilo que o ACTA toca mais sensivelmente para poder funcionar: os direitos e garantias fundamentais.

No quadro do esvaziamento político das eleições brasileiras, atualmente em curso, e da repentina precedência que os direitos fundamentais do candidato do PSDB, e de pessoas próximas a ele, parecem ter ganhado na mídia impressa e televisionada – a ponto de Mônica Valdwogel, em recente entrevista, esquecer-se de que a presunção de inocência da acusada, candidata do PT, é, igualmente, direito humano fundamental, e afirmar resolutamente que “se há uma investigação, então não se pode dizer que é inocente” -, talvez fosse o caso de questionarmos os candidatos e seus partidos sobre sua concreta visão acerca dos direitos humanos, especialmente de um ponto de vista interno. As respostas, assim como a proposição um tanto cambaia da “jornalista” do programa Entre Aspas, da Globo News, poderia lançar luzes sobre a sobrevivência do legado autoritário brasileiro no interior de instituições formalmente democráticas de nosso país. Justamente em razão disso, a relação dos brasileiros com os Direitos Humanos é intensamente contraditória e paradoxal, e, se assim for, deveremos preocupar-nos cada vez mais com propostas como o ACTA, e exigir dos eleitos – sejam eles quem forem, e sejam quais forem os cargos que ocupem - a indeclinável posição de defesa política e institucional dos direitos humanos inscritos em nossa Constituição e assegurados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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 O que é o ACTA? E o Brasil com isso?



As discussões acerca do Acordo Comercial Anticontrafação ou Acordo Comercial Antifalsificação – Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA), em inglês – aumentaram nos últimos meses, após a publicação, datada de 25 de março, de um esboço do documento, que, desde 2007, está sendo negociado por Austrália, Canadá, Cingapura, Coreia do Sul, Emirados Árabes, Estados Unidos, Japão, Jordânia, Marrocos, México, Nova Zelândia, Suíça e União Europeia.

Entre as medidas de prevenção e repressão às práticas que o ACTA define como falsificação e pirataria estão, por exemplo:

·      criminalização da troca não comercial de arquivos pela rede mundial;
·      interceptação de comunicações sem autorização judicial;
·      incumbência aos provedores de acesso das atividades de vigilância do tráfego de arquivos e de imposição de sanções ao usuário que baixar e/ou disponibilizar arquivos protegidos por direitos autorais – a vigilância, na medida em que incide sobre o conteúdo dos arquivos, pode ser caracterizada como uma violação ao sigilo das comunicações e um avanço indevido sobre a esfera da privacidade e da intimidade; enquanto a aplicação de sanções aos usuários pode ser definida como um exercício do poder de polícia por particulares, prática ilegal, porque o poder de polícia é prerrogativa do Estado;
·      penalidades de diminuição da velocidade de conexão e de interrupção do acesso à rede, para o usuário que, supostamente, infringir a legislação de direitos autorais – como um endereço de IP pode ser compartilhado ou brevemente utilizado por vários usuários, a pessoa que for o objeto da punição, o usuário em nome de quem está registrado o endereço de IP poderá não ser o usuário que infringiu a legislação;
·      possibilidade de que uma penalidade passe da pessoa do infrator – em uma situação de compartilhamento de endereço de IP, todos os usuários serão punidos pelo crime imputado à pessoa em cujo nome estiver registrado o endereço, caso a pena cominada seja a diminuição da velocidade de conexão ou a interrupção do acesso à rede.

Como os Estados envolvidos no processo de confecção do ACTA pretendem que, posteriormente, essas e outras medidas de prevenção e repressão à falsificação e à pirataria sejam adotadas também pela maioria dos países remanescentes, quais seriam as consequências que poderiam advir para os usuários brasileiros da rede mundial, se nosso país assinasse o tratado?

Dos cinco exemplos acima, todos, com exceção do primeiro, são medidas que desrespeitam os direitos e as garantias individuais declarados na Constituição Federal. Contudo, o fator relevante, que torna muito improvável que o ACTA venha a ser assinado pelo Brasil no atual ordenamento jurídico, é a proteção especial assegurada aos direitos e garantias individuais, que são definidos como cláusulas pétreas. No art. 60, § 4º, da Constituição, está arrolada uma série de tópicos para os quais não se admite nem sequer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-los. Entre esses tópicos estão os direitos e as garantias individuais, a maioria dos quais inscrita no art. 5º da Constituição, cuja supressão, com vistas à adoção das disposições do ACTA, somente seria possível caso se abolisse a totalidade da ordem constitucional vigente.

Sem embargo daquilo que foi exposto no parágrafo anterior, suponhamos que o Presidente da República assinasse o ACTA.

Nossa Constituição é de tipo rígido – ou “super-rígido”, em face justamente da previsão de cláusulas pétreas –, o que significa que, na parte em que pode ser alterada, é necessário um procedimento legislativo especial para que o texto constitucional possa ser emendado (CF, art. 60, § 2º). Esse regramento torna a aprovação de uma emenda à Constituição um processo mais dificultoso e lento do que o processo adotado para a promulgação e a alteração de uma lei ordinária ou mesmo de uma lei complementar. O objetivo é assegurar uma estabilidade mínima ao texto constitucional, para que a obra do constituinte originário não seja desfigurada pelo constituinte derivado. A rigidez acarreta como resultado a supremacia da Constituição, situando-a no ápice do ordenamento jurídico. (Em Estados que adotam uma Constituição de tipo flexível, o texto constitucional pode ser modificado pelo mesmo processo de promulgação e de alteração da legislação infraconstitucional. Na prática, a Constituição não se distingue formalmente, mas apenas materialmente, ou seja, pelo conteúdo, da legislação não constitucional.) Por conseguinte, toda a legislação infraconstitucional, bem como as emendas constitucionais, devem estar em harmonia com a Constituição, devem respeitá-la irrestritamente; do contrário, serão inconstitucionais e deverão ser retiradas do ordenamento jurídico.

Tradicionalmente, o Poder Judiciário é o poder incumbido da função de realizar o controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional e das emendas constitucionais, porque sua função precípua consiste em aplicar a legislação na solução de litígios, interpretando-a corretamente. No Brasil, todos os juízes de primeira instância e todos os tribunais podem declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato normativo, afastando sua aplicação a um caso concreto. Nesta hipótese, os efeitos atingem somente as partes envolvidas. Todavia, apenas o tribunal encarregado pela própria Constituição da atribuição de zelar pela preservação da integridade do texto constitucional – a corte constitucional (Supremo Tribunal Federal - STF) – tem competência para realizar o controle abstrato de constitucionalidade, que consiste em aferir a conformidade de uma lei, de um ato normativo ou de uma emenda constitucional em relação exclusivamente à Lei Maior (CF, art. 102, I, “a”). No controle abstrato, se o STF concluir que uma emenda constitucional, uma lei ou um ato normativo é inconstitucional, não ocorrerá a suspensão da aplicação da norma impugnada a um caso concreto, porque não há a análise de uma situação fática, mas apenas a análise de normas jurídicas gerais e abstratas. Assim, no controle abstrato, cujos efeitos são erga omnes, valem contra todos, o STF retirará a norma impugnada do mundo jurídico, seja porque é materialmente inconstitucional, isto é, porque desrespeita o conteúdo da Constituição, seja porque é formalmente inconstitucional, isto é, porque não foram observadas as regras, definidas na própria Constituição, para a promulgação de emendas constitucionais, leis e atos normativos.

Consoante a Constituição, compete privativamente ao Presidente da República celebrar convenções e tratados internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional (CF, art. 84, VIII). Quando celebra uma convenção ou um tratado internacional, o Presidente da República não atua como chefe de governo, mas na condição de chefe de Estado, ou seja, atua como o representante de um Estado soberano. Portanto, a celebração de convenções e tratados internacionais fundamenta-se no poder de soberania, em cujo exercício, atribuição privativa do Poder Executivo, nem o Poder Legislativo nem o Poder Judiciário podem interferir.

Conquanto seja competência privativa do Presidente da República, como representante do Estado soberano, a decisão de celebrar ou não celebrar uma convenção ou um tratado internacional, existe possibilidade de controle da atividade presidencial pelos poderes Legislativo e Judiciário – mas não a priori, somente a posteriori. Nenhum dos dispositivos de uma convenção ou de um tratado internacional terá vigência no âmbito do Estado brasileiro se o documento não for referendado pelo Congresso Nacional. O Congresso pode referendar integralmente uma convenção ou um tratado, pode referendá-lo parcialmente ou pode não referendá-lo. Evidentemente, cláusulas de um documento internacional que sejam inconstitucionais não devem, ou melhor, não podem ser referendadas. Entretanto, caso aconteça de o Poder Legislativo referendar uma convenção ou um tratado contendo uma ou mais cláusulas que afrontem a Lei Maior, o STF poderá e deverá declará-las inconstitucionais em relação à Constituição da República Federativa do Brasil, caso seja acionado por um dos órgãos autorizados a impetrar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (CF, art. 103, I-IX). Nesta situação, a declaração de inconstitucionalidade resultará na inaplicabilidade, no âmbito da ordem jurídica brasileira, da parte impugnada do documento internacional. Note-se que o STF não pode retirar do ordenamento jurídico pátrio uma convenção ou um tratado, porque sua celebração é um exercício do poder de soberania, que compete privativamente ao Poder Executivo. O STF apenas declara que o documento ou parte dele é inaplicável, porque inconstitucional, na ordem jurídica interna.

Ainda que um chefe de Estado esteja disposto a se expor a um sério risco de perda de prestígio político, assinando uma convenção ou um tratado que contrarie a Constituição de seu país, via de regra, ressalvada uma expressa disposição de vontade estatal em contrário, a mera assinatura de um documento internacional não obriga o Estado signatário. Em geral, a assinatura somente autentica o texto, como prevê o art. 10 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Embora o art. 11 estabeleça que o consentimento de um Estado em obrigar-se por uma convenção ou um tratado possa ser manifestado no ato de assinatura do documento internacional, a prática não é comum em países que se pretendem democráticos. Normalmente, assina-se apenas para que o texto seja autenticado, ressalvando-se que a vigência da convenção ou do tratado passará a ocorrer posteriormente, com a ratificação do texto pelo Poder Legislativo do país signatário (Convenção de Viena, arts. 12 e 14, respectivamente).*

À guisa de conclusão, atentemos para quatro importantes princípios fundamentais da Constituição, previstos no Título I, que enuncia os fundamentos, os objetivos e os princípios da República Federativa do Brasil, os quais constituem o horizonte de interpretação do todo constitucional e da totalidade da ordem jurídica nacional. O art. 3º, I, determina como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O art. 4º, I, estabelece que nosso país deve se orientar, em suas relações internacionais, pelo princípio da independência nacional. Finalmente, os incisos II e IX do art. 4º preceituam, respectivamente, que o Brasil se regerá, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos – o que implica estrita vinculação do Estado à positiva efetivação dos direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º-17), parte dos quais frontalmente atacada pelo ACTA –, bem como pela “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.

Por tudo o que foi apresentado, podemos concluir que, devido ao ordenamento constitucional que ora prevalece, um cenário em que as disposições do ACTA tenham vigência no Brasil afigura-se como um futuro improvável.

Não obstante, como nos recorda Gaston Bachelard, nunca é demais mantermos a vigilância crítica. 



Texto publicado originalmente em 05.09.2010 na Coluna "Suscitar acontecimentos", do  site O Pensador Selvagem, sob o título: "ACTA, direitos humanos e eleições".


* A própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 7.030/09, foi referendada pelo Congresso Nacional com reserva aos artigos 25 e 66.