Tradução: "Ideia de justiça", de Giorgio Agamben

02 março, 2012


À esquerda, "O vazio"; abaixo, "Recordação", pinturas de Gao Xingjian



Ideia da justiça[1]
Giorgio Agamben


O que quer o Esquecido? Não memória ou conhecimento, mas justiça. Todavia, justiça – à qual ele se fia – por ser justiça não pode fazê-lo aceder ao nome e à consciência; seu rescriptum implacável se exerce só, como punição, sobre os esquecimentos e as carnificinas – sobre o Esquecido, ele não diz palavra (a justiça não é vingança, ela nada tem a reivindicar). Ela não poderia, aliás, fazê-lo sem trair aquilo que se abandona entre suas mãos, não para estar indene à memória e à língua, mas para permanecer imemorial e sem nome. A justiça é, pois, a tradição do Esquecido. Mais essencial que a transmissão da memória é, para o homem, a transmissão do esquecimento, na qual a acumulação anônima cresce sobre seu dorso dia após dia, sem que se possa consumi-la ou abrigá-la. Para todo homem, e com mais razão para toda sociedade, essa pilha é de tal forma enorme que os arquivos mais bem compostos dela não poderiam nada conservar (e toda tentativa de enxergar a história como um tribunal é, da mesma forma, falaciosa).

         Encontra-se lá, contudo, o mais seguro legado de cada homem. Ao fazer escapar à língua dos signos ou da memória, o Esquecido faz nascer para o homem – e para ele, apenas – a justiça. Não como um discurso que se poderia divulgar ou esconder, mas como uma voz; não como um testamento autógrafo, mas como um gesto anunciador ou uma vocação. Nesse sentido, a mais antiga tradição humana não é Lógos, mas Diké (ou melhor, os dois são indissociáveis desde a origem). A linguagem, como memória histórica consciente de si mesma, não é nada senão nosso desespero, surgido imprevisto face às dificuldades da tradição.Ao acreditar transmitir uma língua, os homens doam-se uma voz reciprocamente; e ao falar, eles se livram da justiça sem remissão possível.


[1] Traduzido de : AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. Paris : Christian Bourgois Éditeur, 1998, p. 62-63.