À esquerda, "O vazio"; abaixo, "Recordação", pinturas de Gao Xingjian
Giorgio Agamben
O que quer o Esquecido? Não memória ou conhecimento, mas
justiça. Todavia, justiça – à qual ele se fia – por ser justiça não pode
fazê-lo aceder ao nome e à consciência; seu rescriptum
implacável se exerce só, como punição, sobre os esquecimentos e as carnificinas
– sobre o Esquecido, ele não diz palavra (a justiça não é vingança, ela nada
tem a reivindicar). Ela não poderia, aliás, fazê-lo sem trair aquilo que se abandona
entre suas mãos, não para estar indene à memória e à língua, mas para
permanecer imemorial e sem nome. A justiça
é, pois, a tradição do Esquecido. Mais essencial que a transmissão da
memória é, para o homem, a transmissão do esquecimento, na qual a acumulação anônima
cresce sobre seu dorso dia após dia, sem que se possa consumi-la ou abrigá-la. Para
todo homem, e com mais razão para toda sociedade, essa pilha é de tal forma
enorme que os arquivos mais bem compostos dela não poderiam nada conservar (e
toda tentativa de enxergar a história como um tribunal é, da mesma forma,
falaciosa).
Encontra-se
lá, contudo, o mais seguro legado de cada homem. Ao fazer escapar à língua dos
signos ou da memória, o Esquecido faz nascer para o homem – e para ele, apenas –
a justiça. Não como um discurso que se poderia divulgar ou esconder, mas como
uma voz; não como um testamento autógrafo, mas como um gesto anunciador ou uma
vocação. Nesse sentido, a mais antiga tradição humana não é Lógos, mas Diké (ou melhor, os dois são indissociáveis desde a origem). A
linguagem, como memória histórica consciente de si mesma, não é nada senão
nosso desespero, surgido imprevisto face às dificuldades da tradição.Ao
acreditar transmitir uma língua, os homens doam-se uma voz reciprocamente; e ao
falar, eles se livram da justiça sem remissão possível.
[1] Traduzido de : AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. Paris
: Christian Bourgois Éditeur, 1998, p. 62-63.