Pensar, refém da técnica: o exame de ordem e a filosofia do direito

29 maio, 2012




Ontem, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil anunciou que incluirá Filosofia do Direito como disciplina nos próximos exames da Instituição a partir de 2013. O exame nacional, elaborado e organizado pela Fundação Getúlio Vargas, consiste, hoje, de duas etapas: uma prova preambular objetiva, de caráter generalista, com questões que abrangem as diversas áreas da dogmática jurídica e, não raro, favorecem mais a memorização de conteúdos e enunciados normativos que os raciocínios problematizantes e propriamente jurídicos; uma segunda etapa, escrita, em que o candidato responde a questões discursivas curtas e elabora uma peça sobre um problema dado, em que se avaliam a técnica de redação, argumentação e outros elementos relevantes para o desempenho da profissão.
No entanto, é de longa data a – curiosa e ingenuamente – festejada tentativa de colonizar os espaços de pensamento crítico no direito: em 2010, foram as disciplinas de Direitos Humanos e Ética; agora, em 2013, seguindo uma tendência em boa parte encampada por muitos concursos públicos, o Exame de Ordem disciplina e sobrecodifica um dos últimos territórios de resistência ao sequestro do pensamento jurídico pela técnica: a Filosofia do Direito.
Os efeitos da iniciativa de 2010, sob este ponto de vista, são exemplares. O que aconteceu à cadeira de Direitos Humanos, de 2010 para cá, foi sua transformação em uma disciplina acrítica, reativa, retoricamente esvaziada, de mera enunciação de proposições normativas internacionais – isto, quando não se interpretam tratados internacionais à luz da jurisprudência interna, aberração mais contumaz – na maior parte das faculdades de direito, a fim de cumprir a determinação da resolução do Conselho Federal da Ordem dos Advogados e incrementar os índices das instituições.
É interessante notar que nem mesmo as instituições públicas têm escapado a essa lógica perversa. Não à toa, a classificação da Faculdade de Direito da UFPR em 34ª colocada no VI Exame de Ordem (atrás de UEM, 14ª e UEL, 16ª), divulgado aproximadamente há uma quinzena, tornou-se objeto de preocupação de alunos e professores – o que não faz senão demonstrar a eficácia da estratégica desempenhada também pela Ordem, de sequestro do pensamento pela técnica, mesmo em uma das escolas mais críticas do Brasil.
Com relação à Filosofia, sua inclusão no Exame despertará nos alunos uma preocupação pragmática e instrumental com a disciplina que, convenientemente, dispensa os professores do trabalho de inseminar nos alunos o amor pelo pensamento e a crítica como atividade prática e política educacional. Com o exame, a Filosofia do Direito ingressa no rol das disciplinas meramente úteis, cuja utilidade está provada de antemão e inexoravelmente, contra tudo o que constitui a natureza essencialmente árida e problemática do pensamento: aquilo que ele tem de ascese transformadora de horizontes existenciais dos juristas e, com eles, da mundanidade.
 Paulatinamente, a OAB e seu exame normalizam todos os espaços de pensamento no Direito. A Filosofia do Direito, uma das últimas territorialidades capaz de descodificar o tecnicismo imposto pelo Exame, deve passar, agora, para o lado do código contra o qual, historicamente, agia. Na prática - aquela, de que os juristas mais superficiais tanto gostam -, a Ordem molda indiretamente os currículos universitários, quando são a universidades que deveriam pautar os exames de Ordem e concursos públicos. Isso é resultado de um duplo influxo: a franca decadência das instituições acadêmicas, que se tornam infatigável espaço de repetições medíocres, e a obturação das pequenas possibilidades de desconstituir e escapar a este código. O fato de que universidades comecem a discutir temas que deveriam soar paradoxais a qualquer um – como o “Capitalismo Humanista”, por exemplo - deveria bastar como indício de o quanto essa sobrecodificação das universidades, pelas instituições, é paradoxal.
Cada disciplina propedêutica incluída no Exame representa um golpe nas potências críticas e inventivas do Direito. Não se trata, de forma alguma, do reforço do interesse pelos direitos humanos, pela ética ou pela filosofia jurídica: a instituição conjura e captura mais uma possibilidade de pensamento - e, assim, o pensamento se torna um pouco mais refém, sequestrado pela técnica.
Os horizontes de resistência e criação, contudo, permanecem os mesmos: o trabalho sobre si, a clínica social, a produção desejante, a criação de conceitos e novos planos de consistência, a desconstituição, a crítica, radical e urgente, e o retrabalho comum sobre a crítica jurídica; com ela, contra ela e para além dela. A esse conjunto de trabalhos - que não exige uma postura apenas dos filósofos do direito, mas dos pensadores de todas as humanidades - foi que chamei, certa vez, filosofia do direito na imanência.

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"Apócrifos"

22 maio, 2012



Aforismos em defesa e memória da Livros de Humanas

1. Nómos. – Contra a autoridade dos nomes próprios e a propriedade que se inscrevem no nómos – que é, sobretudo, rapina, divisão e apossamento forçado – velamos o corpo do autor, sua mão escritora, os riscos indeléveis, a impressão no corpo, o gesto suspenso e esmaecido.

2. Disse alguém. – [...]Esses deveriam ser os princípios de toda escritura, porque toda escritura está para além do autor.

3. A glória. – Alguém dizia que mesmo os filósofos que rejeitam a glória, não deixam de escrever seus nomes nas capas de seus livros. Isso porém, não é a prova da identidade, mas do devir um outro, que é a prova de toda escritura.

4. O corpo é o escritor –. A mão é a escritora; o sujeito, seu instrumento.

5. Quem o autor pensa que é? –. Você, o criador...

6. O que é um autor? –. O autor é o animal que vive da (s)obra alheia. A escritura é o limiar do seu excesso; a obra, o limiar da sua exceção.

7. Sem assinatura –. Imprimir o signo do pessoal a uma criação é apagar sua própria assinatura inominável.

8. Aos editores –. Só queremos o pensamento. Quanto às obras, guardem-nas num cofre (para si mesmos).

9. Aos juízes –. Como continuar a se defender de pensar – quando se tornar inútil todo recurso à autoridade?

10. O autor está morto. – Ao comum, seus despojos.

11. Nós, os criadores. – À recolha.


#FreeLivrosDeHumanas

Tradução: "Defender-se", inédito de Michel Foucault

09 maio, 2012




Defender-se
Michel Foucault
[Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa]

1 – Evitemos de imediato o requentado problema do reformismo e do anti-reformismo. Não nos encarregamos de instituições que precisam ser transformadas. Temos de nos defender na medida em que, e tão bem quanto, as instituições sejam impedidas de se reformarem. A iniciativa deve vir de nós, não sob a forma do programa, mas sob a forma do colocar em questão e sob a forma da ação.

2- Não é porque há leis, não é porque eu tenho direitos que eu estou habilitado a me defender; é na medida em que eu me defendo que meus direitos existem e a lei me respeita. É, antes, toda a dinâmica da defesa que pode dar às leis e aos direitos um valor, para nós, indispensável. O direito não é nada se não é vivificado na defesa que o provoca; e apenas a defesa atribui, validamente, força à lei.

3- Na expressão “Defender-se”, o pronome reflexivo é capital. Trata-se, com efeito, de inscrever a vida , a existência, a subjetividade e a realidade mesma do indivíduo na prática do direito. Defender-se não quer dizer se autodefender. A autodefesa significa querer fazer justiça a si mesmo, quer dizer identificar-se com uma instância de poder e prolongar, baseado em sua própria autoridade, suas ações. Defender-se, ao contrário, é recusar-se ao jogo das instâncias de poder e servir-se do direito para limitar suas ações. Assim entendida, a defesa é um valor absoluto. Ela não seria limitada ou desarmada pelo fato de que a situação fora outrora pior, ou poderia ser melhor mais tarde. Não nos defendemos senão no presente: o inaceitável não é relativo.

4 – Defender-se demanda, pois, a um só tempo, uma atividade, alguns instrumentos e uma reflexão. Uma atividade: não se trata de encarregar-se da defesa da viúva e do órfão, mas de fazer com que as vontades de se defender existentes possam vir à luz. A reflexão: defender-se é um trabalho que demanda análise prática e teórica. Para ele, é preciso efetivo conhecimento de uma realidade por vezes complexa, que nenhum voluntarismo pode desagregar. É preciso, em seguida, um retorno sobre as ações realizadas, uma memória que as conserva, uma informação que as comunica e um ponto de vista que as coloca em relação com outras. Nós certamente deixaremos a outros a tarefa de denunciar “os intelectuais”. Instrumentos: não se os encontram totalmente acabados nas leis, nos direitos e nas instituições existentes, mas em uma utilização desses dados que a dinâmica da defesa tornará inovadora.

Sobre: “Se Défendre” é um texto inédito de Michel Foucault no qual se apresenta uma síntese de suas relações com a legalidade, os direitos e as instituições, publicado por Courant Alternatif, e disponível no original no seguinte endereço: http://www.cip-idf.org/article.php3?id_article=6191