* Entrevista em seis partes, legendas em português; para assistir às demais, clique abaixo em "continuar lendo"...
Desmonte em dois tempos: quatro falácias sobre o caso Battisti
11 junho, 2011
A. Máquina persecutória
A cada vez que perguntamos sobre o
passado, tornamo-nos os protagonistas e os agentes de uma guerra de guerrilhas
pela univocidade do sentido dos signos que devem produzir
memória. É disso que se trata também no caso Cesare Battisti, cujo último
acontecimento – sua libertação a um tempo em que já estava submetido a uma
prisão clamorosamente ilegal no Brasil – reacendeu a polêmica acerca das
relações políticas e comerciais Brasil-Itália. Jornais italianos (aqui
e aqui,
por exemplo), Espanhóis
e Ingleses
deram conta de sua tardia liberação. Por sua vez, a mídia brasileira fez de
tudo; esforçou-se por demonstrar que a decisão do STF teria sido covarde e
politicamente submissa, mas também fanfarronou uma
falsa extradição de Battisti.
É certo que temos ouvido coisas muito
disparatadas; se, por um lado, fico contente que meus alunos, por exemplo, em
sua maioria filhos da classe média, questionem sobre a validade dos pedidos da
Itália – um questionar de uma generosidade crítica que felizmente os saca do
imaginário comum autoritário da classe média brasileira – por outro lado, tenho
ouvido muitas manifestações dentro dessa mesma classe média segundo as quais o
caso Battisti é interpretado como uma forma de chancela e assunção da
impunidade e, se assim for, logo se proclama que toda forma de impunidade é
moralmente odiosa.
Por absurdo que pareça, na blogosfera, há
até mesmo quem
se tenha levantado contra a impunidade gerada pela hipertrofia do “garantismo
penal brasileiro”. Dizê-lo é o maior dos absurdos lógicos, especialmente quando
se vê que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que redundou na
soltura de Battisti, foi estritamente legalista. Por certo, Battisti, que,
legalmente, deveria ter sido libertado assim que Luis Inácio decidira por sua
não-extradição, permaneceu mais alguns meses encarcerado. Criticar a “impunidade”
que resulta das concessões humanitárias do “garantismo brasileiro” a Cesare
Battisti ou é sinal de completa ignorância ou o sintoma de que uma perversão
obsessiva presidiu a interpretação dos fatos. Desse tipo de perversão, muito
comum nas mídias e nas médio-classes, resultam quatro falácias que é preciso
desmontar como operação de uma guerra de guerrilha conceitual.
São as falácias, muitas vindas do
governo de Berlusconi e repetidas acriticamente pela mídia brasileira: 1) Battisti não é um perseguido
político; logo, Battisti é um criminoso comum; 2) Battisti teve um julgamento
justo e democrático na Itália; 3) A Itália só quer fazer justiça moral às
famílias das vítimas; 4) O Supremo Tribunal Federal negou a extradição de
Battisti por razões políticas.
B. Desmonte histórico: 1 e 2
Nos anos de chumbo italianos, caracterizados
pela tentativa da Europa Ocidental de conter o avanço do comunismo, Battisti
participou de um grupo armado de resistência de esquerda, o PAC, “Proletários
Armados pelo Comunismo”, grupo qualificado pela Folha
de São Paulo com o fácil e fluido emblema de “terrorista”. Sobre o signo do
terror, sobre o qual não me demoro, fala por mim o texto Alexandre
Nodari.
Battisti, por sua vez, sempre se
declarou inocente das acusações. Sabe-se que, na Itália do pós-68, proliferaram
medidas excepcionais; o próprio Estado Italiano chegou a planejar, financiar e
executar atos de terrorismo como parte da estratégia de tensão (para
compreender um pouco melhor o ambiente político italiano daquele tempo, vale
assistir à primeira metade do
documentário sobre Antonio Negri, que postei recentemente). Um dos
primeiros exemplares dessa estratégia de tensão, promovida pelo governo
italiano, foi um atentado à bomba na Piazza Milan Fontana, seguida de sua
atribuição a “grupos terroristas de esquerda”.
Um direito de polícia, técnica mais
manejável no controle das situações fluidas criadas pela resistência e no
combate aos grupos de esquerda italianos, só seria possível ao passo em que o
terror fosse generalizado e o medo passasse a investir todo o campo social. Eis
o que explica que o primeiro terrorista tenha sido, forçosamente, o próprio
Estado Italiano: em momentos como o das greves e reivindicações operárias
pós-68 na Itália, diante do reconhecimento da força dos movimentos pela
abolição do trabalho assalariado, o Estado italiano sabia que era preciso
implantar violência e, ao mesmo tempo, segurança pública, diz Antonio Negri.
Violência e segurança pública logo são
aparelhadas por medidas de exceção; disso, resultou que dezenas de milhares de
pessoas foram sumariamente presas, o tempo de prisão provisória (para investigação)
fora continuamente dilatado por meio de decretos, e assim “a lei” italiana, que
já desertara completamente os espaços formalmente democráticos de sua produção,
pôde combater as ações políticas da esquerda italiana. No plano processual
penal, medidas de exceção, como a Legge
Reali, suspendiam defesas processuais dos réus baseadas em nulidades – e por
aí afora...
C. Desmonte
atual: 3 e 4
Como prova a
negativa italiana em extraditar o banqueiro Salvatore Cacciola a pedido do
Brasil, nenhum tratado internacional acerca da bilateralidade da extradição
derroga a soberania do Chefe de Estado para emitir juízo de caráter político na
extradição de quem quer que seja. Ademais, no Brasil, em toda extradição
passiva, o STF está juridicamente limitado pelo Estatuto do Estrangeiro e pela
adoção legislativa do sistema
de contenciosidade limitada, o que implica que o STF não pode manifestar-se
sobre o conteúdo político da decisão de extradição, mas apenas emite juízo de
legalidade acerca do pedido de extradição. Em se tratando do STF, que já
pronunciou decisões com
este teor, qualquer decisão em favor da eficácia da legalidade é uma
conquista institucional na manutenção do verdadeiramente frágil Estado de
Direito no Brasil. No caso Battisti, a tese que prevaleceu, e que resultou na
liberação do extraditando, seguiu simplesmente os ditames da legalidade – coisa
rara se considerarmos o Olimpo de onde vem.
De seu turno, a Itália
anuncia que pretende recorrer a Haia, pois a decisão brasileira de não
extraditar Battisti “não levou em consideração a expectativa legítima de que se
faça justiça, em particular para as famílias das vítimas de Battisti”, declarou
Silvio Berlusconi. Já Frattini, chefe da Diplomacia Italiana, afirmou que, ao
não extraditar Battisti, o Brasil “ofende o direito à justiça das vítimas dos
crimes cometidos por Battisti e está em contradição com as obrigações presentes
nos acordos internacionais que unem os dois países".
Se a estranha obstinação italiana em
executar a pena de prisão perpétua contra Battisti não comprovar que Battisti é
um perseguido político – especialmente em se tratando de um
país cuja justiça é tão licenciosa com crimes de seus políticos de primeiro
escalão (outros exemplos: aqui,
aqui
e aqui)
– nada será capaz de fazê-lo.
Se diante da ética da legalidade todo
crime tem a mesma importância, pois ameaça a higidez da ordem legal (dizem os moralistas,
os punitivistas, os classe-mídia...), vale deixá-los com dois dos dilemas
morais que tanto apreciam:
1) Por que se obstinar tanto em justiciar
as vítimas de Battisti, mas as de Berlusconi, nem tanto?
2) Por que o STF pôde compreender que
Battisti é extraditável “por não ser criminoso político” – pois teria cometido
crimes de sangue –, enquanto a
mesma caneta que o considera extraditável em tais termos anistia agentes do
Estado brasileiro considerando seus crimes comuns (assassinato, desaparição
forçada de pessoas, estupro, tortura...) não como crimes de sangue, mas como “crimes
conexos a atos de motivação política”? Eis o dilema lógico que emerge explícito
da estrutura de um dos poucos votos corajosos na ADPF 153 (conhecida como a
ADPF “da Lei da Anistia”), o do Ministro
Ricardo Lewandowski, centrado sobre a jurisprudência do STF em matéria do
significado jurídico do termo “crime político”.
--
Negri: a volta de "L'Eterna rivolta"
28 maio, 2011
É certo que já havia publicado em outro post o documentário sobre Negri, "L'Eterna Rivolta", mas também é certo que prometi republicá-lo assim que obtivesse uma legenda em português para ele. Sabendo que o utilizaríamos em aula como uma introdução à vida e à obra de Antonio Negri - a fim de discutirmos seu anti-liberalismo e as transcrições biopolíticas do direito em Império, o best-seller de Antonio Negri e Michael Hardt -, Alexandre Ferreira (o @AlexandreAlFer , do Twitter), nosso aluno de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito de Curitiba, muito gentilmente providenciou a tradução e legendagem (baseados nas legendas em inglês). Aproveito, então, para compartilhar com os leitores de A Navalha de Dalí, o streaming do vídeo, que Alexandre postou na internet. Ainda, o link para o download direto: www.alexandreferreira.com. br/AntonioNegri- AEternaRevolta_1.avi [*AVI, aprox. 310 MB]
Aproveitando, uma vez mais, para agradecer a Alexandre pelo auxílio didático e, mais que isso, para agradecê-lo em nome dos leitores e admiradores de Negri para os quais a língua inglesa ainda constituía uma barreira (não imperial, mas imperalista); assim, convido-os a apreciarem (uma vez mais) a bonita e instigante história de vida do cientista político, filósofo, político e intelectual italiano Antonio Negri.
II Congresso Internacional de Direitos Humanos
25 maio, 2011
II Congresso Internacional de Direitos Humanos da ULBRA – Iguais na Diferença
Dias 09, 10 e 11 de Junho de 2011
Auditório Prédio 1 da ULBRA Canoas
30 horas de atividade complementar
Programação:
09/06 (quinta-feira):
19h30 – Abertura Oficial
19h45 – Sociedade e Liberdade no Estado Democrático
ALESSIA MAGLIACANE (ITA) (Mestre em Direito Comparado Europeu pela Universidade Pública de Paris 1 - Panthéon Sorbonne. Mestre em Gestão de Mediação de Conflitos - Universidade de Nápoles. Mestre em Direito - Universidade Federico II, Nápoles)
21h – Lançamento dos livros: TEORIA PLURIVERSALISTA DO DIREITO INTERNACIONAL, do Prof. Anderson V. Teixeira (Ed. Martins Fontes), e TEMAS CRÍTICOS EM DIREITO, organizado pelo Prof. Alberto Wunderlich, Augusto Jobim do Amaral, Daniela Pires e Estevão Athaydes (Ed. Sob Medida).
10/06 (sexta-feira):
8h45 - Painel “Direitos Humanos e Acesso à Justiça”
“Acesso à Justiça”
JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER (PUCRS / Desembargador do TJRS)
“O direito fundamental ao processo justo”
DANIEL FRANCISCO MITIDIERO (UFRGS / Doutor em Direito - UFRGS - Advogado)
10h30 - Painel “Direitos Humanos e Liberdade Religiosa”
“Islã, Secularismo e Direitos Humanos”
CÉSAR AUGUSTO BALDI (Mestre em Direitos Fundamentais - ULBRA / Assessor da Vice-Procuradoria da República)
“Liberdade religiosa, entre a inclusão e o fundamentalismo”
JAYME WEINGARTNER NETO (ULBRA-FSMP / Doutor em Direito do Estado-PUCRS / Promotor de Justiça)
“Conteúdo e funções da dignidade da pessoa humana no constitucionalismo”
INGO WOLFGANG SARLET (PUCRS / Doutor em Direito Ludwig Maximillians Universität München / Juiz de Direito)
14h - Atividades alternativas:
- Exibição do filme A VIDA DOS OUTROS (Das Leben der Anderen - 2006), seguida de debate. - Debatedores: Rodrigo Nunes (PhD em Filosofia - University of London) e Augusto Jobim do Amaral (ULBRA/ESADE / Doutorando em Altos Estudos - Coimbra)
- Apresentação de Comunicações
18h15 – Lançamento do Livro: AS DOBRAS DO TEMPO, do Prof. Murilo Corrêa (Ed. Lumen Juris) e Inauguração da Exposição “Direito à Memória e à Verdade”
19h - Painel “Direito e Autoritarismo”
“Direitos Humanos, Estados Kafkianos”
FLÁVIA CERA (Doutoranda em Teoria Literária – UFSC)
“Ditadura Militar e Cultura Jurídica Autoritária no Brasil”
PÁDUA FERNANDES (UNINOVE / Doutor em Direito – USP)
20h30 - Painel “O Verso dos Direitos Humanos”
“Quando o pensamento é privatizado: liberdade de expressão, direitos autorais e censura”
ALEXANDRE NODARI (Doutorando em Teoria Literária – UFSC)
“Os direitos humanos na encruzilhada biopolítica”
MURILO DUARTE COSTA CORRÊA (UFPR / Doutorando em Direito – USP)
11/06 (Sábado):
9h - Painel “Direitos Humanos e Sexualidade”
MARCELY MALTA (Representante do Movimento LGBTT)
HÉLIO SILVA (UCAM/UFRJ / Doutor em Antropologia-UFRJ)
"Direitos para quem? Dialogando sobre prostituição de mulheres"
ELISIANE PASINI (Themis / Doutora em Antropologia Social - UNICAMP)
12h - Entrega dos Certificados - Os certificados de participação, com carga horária de 30 horas, serão entregues após o término da última palestra do evento, dia 11/06/2011, aos participantes que comprovarem, no mínimo, 75% de freqüência.
*A Coordenação do Evento reserva-se o direito de alterar o conteúdo programático por motivo de força maior. Eventuais alterações serão informadas através do sitewww.integraleventos.com.br
INVESTIMENTO:
Categoria | até 03/06 | até 08/06 | No Local (mediante disponibilidade de vagas) |
Acadêmicos | R$ 40,00 | R$ 50,00 | R$ 60,00 |
Profissionais | R$ 50,00 | R$ 60,00 | R$ 70,00 |
INFORMAÇÕES COMPLETAS E INSCRIÇÕES NO SITE:WWW.INTEGRALEVENTOS.COM.BR
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Livro: Dobraduras do Tempo
20 maio, 2011
Prezados leitores de A Navalha de Dalí,
Com uma grata felicidade, comunico que a Editora Lumen Juris, sediada no Rio de Janeiro, publicou, neste maio, "Dobraduras do Tempo: ensaio sobre a história de algumas durações no direito". Livro que escrevi na companhia de dois bons amigos, os professores Gilson Bonato e Cleverson Leite Bastos. O livro já pode ser adquirido, com desconto, no site da Editora Lumen Juris, e contou com prefácio do professor e amigo Alexandre Morais da Rosa.
Seu lançamento ocorreu no I Congresso Internacional de Ciências Criminais - em Homenagem ao Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho -, promovido pelo Curso de Direito da FESP-PR.
Em 25.05.11, sortearemos pelo Twitter (via Sorteie.me) um exemplar de Dobraduras do Tempo; basta seguir o perfil @_mdcc e dar RT neste tweet:
E, pronto! Já estará concorrendo a este livro:
Descrição: O presente trabalho apresenta uma breve síntese das diversas concepções do tempo, tanto na história da filosofia como na história da ciência, na tentativa de demonstrar que, durante muitos séculos, o tempo foi compreendido como universal e homogêneo para todos os homens, e que esta concepção acabou por afetar o próprio direito. Somente a partir do final do século XIX é que a visão newtoniana do tempo começa a ser questionada, dando lugar a uma visão de tempo então permeada e constituída pelos conceitos de relatividade e, ainda, de subjetividade. Fonte: http://www.lumenjuris.com.br/?sub=produto&id=2698
* O resultado será anunciado em 25.05, no perfil @_mdcc ; boa sorte!!!
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Ensaio: O plano de organização do direito como Norma
10 maio, 2011
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Política e polícia: os arcanos do poder
04 maio, 2011
Aos pés da Torre Eiffel,a exceção naturalizada no espetáculo monumental
Murilo Duarte Costa Corrêa
Pèrché il sovrano, che ha consentito di buon grado a presentarsi in veste di sbirro e di carnefice, mostra ora alla fine la sua originaria prossimità col criminale. Giorgio Agamben, “Polizia sovrana”.
1. Jacques Derrida, no primeiro dos textos que compuseram Força de Lei, recolhe em Montaigne a ideia de que, se as leis se mantêm em crédito, é por serem leis, não por serem justas; trata-se da força que advém do que o próprio Montaigne chamara “o fundamento místico da autoridade” (Derrida, 2007, p. 21).
Derrida percebe que a desarticulação entre direito e justiça proposta por Montaigne implicava que atribuíssemos um “crédito” à autoridade da lei que ela não pode ter por si. Portanto, a fundação do direito é efetuada por meio de uma força performativa – estatuída como extensão do próprio ato instituinte – ou, como prefere Derrida, mística, autoridade fundada em si mesma, violência sem fundamento.
2. Walter Benjamin, na abertura de um de seus últimos textos, elevava à condição de tarefa de uma crítica da violência “a apresentação de suas relações com o direito e a justiça” (Benjamin, 1986.). Não por acaso, Benjamin estabelecera os horizontes de sua tarefa crítica sobre a ambiguidade da palavra alemã “Gewalt” que, a um só tempo, pode significar violência e exercício de autoridade legítima (staatsgewalt). Se, por um lado, a crítica da violência, segundo Benjamin, deveria engastar-se na apresentação de suas relações entre direito e justiça, por outro, “A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história” (Benjamin, 1986).
3. Giorgio Agamben, jurista e filósofo político de declarada inspiração benjaminiana, e curador da edição das obras completas de Benjamin na Itália, em Meios sem fim, descreve, sob o título “Polizia Sovrana”, uma relação aparentemente paradoxal entre polícia e soberania, legalidade e exceção. Classicamente, o Direito Público sempre caracterizou o poder de polícia como atividade limitada à rigorosa execução da lei. A assumir-se como válida tal definição, como seria possível, então, atrelar os conceitos de polícia (cuja ação está, por definição, limitada ao ordenamento jurídico) e soberania – um conceito, por definição, metajurídico, embora fundador do direito?
4. Um primeiro ponto de contato é sugerido por Michel Foucault (2008, p. 429) em Segurança, Território, População. Turquet de Mayern teria visto as atividades de governar e de exercer o poder de polícia como um só e mesmo gesto; toda a ordem em um Estado derivaria dessa atividade de polícia, que alcançava desde a educação das crianças até a gestão da circulação de mercadorias e de pessoas. É daí que o Estado mesmo deve retirar sua força, assegurando que os homens vivam e que não morram em grandes quantidades, de forma tal que a polícia constitui-se como o conjunto das intervenções e dos meios que garantem “que viver, melhor que viver, coexistir, será efetivamente útil à constituição, ao aumento das forças do Estado” (Foucault, 2008, p. 438). Tratava-se, pois, de fazer da felicidade dos homens a utilidade do Estado, a própria força do Estado, como diz Michel Foucault; eis o motivo pelo qual, no interior das definições da razão de Estado, encontramos, até mesmo, uma alusão à felicidade dos homens. Uma vez que a polícia regulamenta o modo pelo qual os homens vivem, coexistem, trocam, circulam etc., Foucault lembra que no Tratado de Direito Público de Domat encontra-se uma identidade quase sem resíduos entre as ações de urbanizar e policiar.
Foucault, no entanto, percebe que a parcela que cabe à polícia na política, ou na gestão da razão de Estado, não pode ser dissociada de uma teoria e de uma prática governamentais, geralmente postas no mercantilismo, como aquilo que proporciona o equilíbrio em meio à intra-competição européia. Na medida em que o Estado passa a interessar-se pela governamentalidade, nasce a polícia, e é o mercado quem aparece como a grande força do Estado.
Embora derivada do poder régio, a polícia será percebida como não sendo justiça, nem como prolongamento desta. Isto já afirmava um teórico do Direito como Bacquet: as leis seriam definitivas e permanentes, enquanto as coisas de polícia seriam as instantâneas, as imediatas, como dizia Catarina II. Aí está a especificidade da polícia: no detalhe. A seguir Foucault (2008, p. 458), trata-se de um golpe de Estado permanente, de uma polícia que não necessita de leis, mas sobrevive em um mundo plenamente regulamentar, fazendo proliferar enormemente disciplinas locais e regionais.
5. Quase duas décadas depois de Foucault ter mostrado a mútua gênese de política e polícia, Agamben esclarece o enigma da proximidade entre polícia e “o nexo constitutivo entre violência e direito que caracteriza a figura do soberano”:
Segundo o antigo costume romano, ninguém, por nenhuma razão, podia interpor-se entre o cônsul dotado de imperium e o lictor mais próximo que carregava o machado sacrificial (com o qual se executavam as sentenças de pena capital). Essa contigüidade não é casual. Se o soberano é, de fato, aquele que, proclamando o estado de exceção e suspendendo a validade da lei assinala um ponto de indistinção entre violência e direito, a polícia move-se sempre, por assim dizer, em um similar “estado de exceção”. As razões de “ordem pública” e de “segurança”, da qual essa se encontra em cada caso incumbida de decidir, configura-se uma zona de indistinção entre violência e direito exatamente simétrica àquela da soberania (Agamben, 1996, p. 84).
O ingresso da soberania na figura da polícia acaba por levar à criminalização do inimigo. Classicamente, pela aplicação do princípio par in parem non habet jurisdictionem, nenhum soberano poderia ser julgado como criminoso pelo soberano da nação inimiga. No entanto, Agamben (1996, p. 85-86) observa que desde o fim da Primeira Guerra Mundial, teve início um processo que excluía o inimigo da humanidade civil e o caracterizava, ao mesmo tempo, como criminoso. Tal processo teria sido levado a cabo no interior de uma operação de polícia cuja atuação não se encontrava vinculada por nenhuma regra jurídica.
Da aproximação definitiva entre soberania e polícia, Agamben ri-se do fato de os soberanos não perceberem que esta criminalização pode, a qualquer momento, voltar-se contra eles: “Hoje, não há sobre a terra um chefe de Estado que não seja, nesse sentido, virtualmente um criminoso. Cada um que hoje veste o manto triste da soberania sabe poder ser tratado, um dia, como criminoso por seus colegas.” (Agamben, 1996, p. 86).
*
O que Tropa de Elite II mostra senão as variadas expressões dessa co-originariedade entre polícia e político, de que falaram Michel Foucault e Giorgio Agamben? O que é a polícia, hoje, senão o seio no qual lei e perversão da lei fazem duas imagens simétricas e apenas aparentemente contrapostas? O desafio de pensar aquilo que está legível em Tropa de Elite II está em atingir o coração de certas zonas obscuras na própria visibilidade nua de suas imagens.
O subtítulo teria constituído o primeiro signo de um ato falho que dá a ver o sentido que decanta por debaixo das montagens: “O inimigo agora é outro” pode muito bem sugerir que a co-originariedade entre polícia e política não pode passar-se – nem no primeiro nem no segundo dos volumes – da política do amigo-inimigo schmittiana. De “missão dada é missão cumprida” – subtítulo do primeiro dos filmes – a “O inimigo agora é outro”, faz-se semiologicamente a passagem entre a polícia como atividade de mera execução da lei ou dos comandos dos superiores hierárquicos em direção à política higienista de extermínio “do inimigo”: o pobre, o excluído, o traficante, o favelizado, aquele ao qual lei alguma socorre, aquele sobre cuja vida e morte o policial-soberano decide livremente e quase sempre impune.
Daí porque as políticas de “apaziguamento” e “urbanização” nas favelas brasileiras, especialmente da cidade do Rio de Janeiro, fazerem um só corpo com a atividade de polícia; atividade essa que, no segundo filme, dará a ver as relações imediatas entre exercício do poder de polícia e circulação de pessoas, coisas, mercadorias, mercados paralelos para satisfazer desde necessidades infinitesimais da vida orgânica (o gás de cozinha, e.g.) até a necessidade de inclusão na sociedade de consumo e do espetáculo (a tevê a cabo pirata que ingressa na favela).
Poucos dias antes do chamado “massacre do Realengo”, um suspeito de ter cometido o crime de roubo é perseguido e capturado pela Polícia Militar de São Paulo. Os policiais imobilizam o suspeito, que estava desarmado, com um tiro na perna; após capturado, o suspeito é conduzido até o cemitério de Ferraz de Vasconcelos e executado.[1]
Nascimento, tido como o último dos heróis brasileiros, trabalha moral e dualmente com a política do amigo-inimigo, do bom e do mau cidadão, do cidadão com direitos e do cidadão de segunda classe, sem direito a ter direitos, como quisera Hannah Arendt; cidadão que pode ser interrogado violentamente e a qualquer tempo, que pode ter sua residência invadida (afinal, quem dirá que uma casa humilde em área de invasão em favela é domicílio inviolável no sentido constitucional do termo?), torturado, “trabalhado ou enfiado no saco”, na gíria do BOPE, ou até mesmo executado sumariamente a fim de convir com a política higienista e de extermínio social do outro. A pergunta que gostaria de fazer, e que ultrapassa em muito o pobre diagnóstico que Tropa de Elite II é capaz de realizar, talvez possa ser resumida no seguinte: quando e por que perdemos a capacidade de nos assombrar com o que é ordinário (as torturas, as graves violações de Direitos Humanos, as execuções sumárias que têm lugar todos os dias nas grandes cidades) e passamos a nos assombrar exclusivamente com o imprevisível? O que isso significa? Será que a lição que Realengo deixa não é apenas esta: deveríamos nos escandalizar menos com o imprevisível e mais com o ordinário? Ou será que, inescapavelmente, continuaremos a cumprir o que Turquet previra: “[A polícia] se ramifica por todas as circunstâncias da vida do povo, por tudo o que o povo faz ou empreende”; ou, talvez, como quisera Foucault de maneira mais sintética, será que nunca seremos capazes de escapar do adágio segundo o qual, absolutamente, “A polícia inclui tudo”?
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bolati Boringhieri, 1996.
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al., São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1986.
DERRIDA, Jacques. Força de lei. O “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[1] Notícia de “O Globo”: Mulher vê execução em cemitério e denuncia policiais militares em SP (04.04.2011). Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2011/04/04/mulher-ve-execucao-em-cemiterio-denuncia-policiais-militares-em-sp-924157665.asp>