Elogio dos desempregados, por Laurent de Sutter

01 novembro, 2013




Quando Paul Lafargue decidira tomar da pena para redigir O direito à preguiça, foi algo como um pastiche, uma espécie de provocação – como um gesto de desafio irônico à ordem da produção que ele assistia lentamente se consolidar ao redor de si mesmo. Cento e trinta anos depois da publicação da segunda edição de seu libelo, porém, o gesto realizado parece gozar de uma pertinência, de uma potência e de uma urgência novas, maiores até mesmo que aquelas que foram as suas, inicialmente. Isso porque enquanto a Europa, por conta da inépcia de governos incapazes de compreender que a própria ideia de austeridade é um insulto à inteligência (mesmo que ela fosse o que os economistas defenderam antes de mudarem de opinião), afunda-se sempre mais na morosidade, o direito defendido por Lafargue tornou-se o insulto supremo. É verdade que o núcleo privilegiado desse insulto, tal como se encontra formulado pelos cidadãos como pelos decisores, pelos editorialistas como pelos intelectuais, jamais dispusera de meios de defesa consideráveis – porque não se trata de ninguém, mas do desempregado. Aos olhos do ethos contemporâneo da austeridade, o desempregado tornou-se a incarnação de uma espécie de obscenidade: já que o resto do mundo tenta se virar para tentar garantir, com sua sobrevivência, também a sobrevivência de uma economia oscilante, o desempregado não faz nada além de tocar, com uma impecável regularidade – aquela de toda administração – uma soma de dinheiro cuja justificação suscita cada dia mais cólera. Ali, onde nós deveríamos unir nossas forças e aceitar ir ao nosso trabalho como se se tratasse de uma tarefa cívica, visando à restauração de não se sabe muito bem qual ideal econômico arruinado, o desempregado é aquele cujas jornadas são completamente estruturadas ao redor de um único imperativo: nada fazer.

Se se pode compreender que contadores, tendo tomado o lugar de nossos governantes, veriam com maus olhos a hemorragia de auxílios fluindo na direção de uma franja sempre mais importante da sociedade, é triste constatar que isso se passa até mesmo com os trabalhadores, a quem se faz crer que o sangue, assim derramado, é bombeado diretamente de suas próprias veias. Além de essa explicação ser falsa, ela se caracteriza pela mais alucinante, a mais nauseabunda e a mais odiosa das más-fés : a de todos aqueles que pretendem, para dissimular sua própria inépcia, introduzir uma divisão entre aqueles que poderiam dar-se conta do que se passa. Deixar propagar-se a ideia de que os desempregados são vagabundos que vivem das moedas dos últimos contribuintes que mantêm nossa sociedade no reto caminho de um capitalismo tornado sinônimo do grande banditismo não é, com efeito, senão isto: uma enésima variação sobre o bom e velho princípio que diz que é preciso dividir para reinar – e que não pode haver reino que não suponha a divisão. Se o preferirmos, apresentar os desempregados como ocorrências do pânico de uma máquina de seguridade social que custa cada dia mais aos «contribuintes» é uma maneira de deixar crer que existe, na população de uma sociedade, duas categorias diferentes de cidadãos: aqueles que pagam e aqueles que não. E os que não pagam, porque custam ao invés de contribuir em um momento em que a ladainha da diminuição dos custos se torna algo da ordem do credo, não parecem mais estar à altura de fazer valer as razões de sua existência – face ao heroísmo daqueles que pagam. Esses que não pagam não são mais verdadeiros cidadãos, nem mesmo verdadeiros indivíduos: são parasitas, indesejáveis, excedentes ou supranumerários. Bem assim, pois, os desempregados: eles se tornaram o galho morto que conviria podar para que aqueles que pagam possam, enfim, receber o fruto natural de seu trabalho – como se governo nenhum jamais tivesse agido nesse sentido.

Ao escolher dividir sua população ao redor da questão do desemprego, os governos dos países europeus sabem muito bem aquilo que fazem: eles designam, recorrendo a uma linguagem moral (preguiça!), aquilo que se pode chamar de bode expiatório. Eis aí, segundo eles, uma maneira de se desincumbir de sua própria incapacidade de suscitar aquilo a que, em seus discursos, não cessam de apelar – a saber, com que preencher os caixas que eles esvaziaram de maneira conscienciosa no curso dos últimos decênios? Porém, sobretudo, é uma maneira de reafirmar seu poder sobre as vidas daqueles de que foram encarregados e, ainda, de reafirmar seu poder sobre as escolhas pelas quais se deixa um indivíduo conduzir essa vida – isto é, de reafirmar seu poder contra a liberdade dos indivíduos em questão. Trabalhar deveria ser, em uma sociedade digna, uma escolha deixada a todos e a cada um, assim como deveriam ser escolhas as modalidades do dito trabalho (ou de sua ausência) ; não uma espada contra o pescoço de cada um, combinada com a ameaça latente de ser, um dia, tratado como indesejável. Considerar os desempregados com indesejáveis torna-se, na verdade, considerar que a vida não é uma questão de escolha – ou, que se ela é uma questão de escolha, esta não pode operar-se senão entre os itens de um catálogo magro como uma folha de papel: aquele que define o que é um bom «contribuinte». Que nós disponhamos de riquezas suficientes para assegurar a todo mundo uma verdadeira liberdade de escolha, mais que perseguir aqueles que são seu símbolo, teria, desde há muito, feito refletir os governantes se a realidade do problema do desemprego fosse, de fato, uma realidade financeira. Nós nos damos conta agora: trata-se muito mais de uma realidade de poder – o poder de decidir a vida de cada um, sem que seu próprio ponto de vista mereça ser levado em conta.


* Traduzido do original em francês: Laurent de Sutter, "Éloge des chômeurs" (no prelo).

As multidões sem rosto

09 outubro, 2013



"[...] se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino [...]". Deleuze e Guattari


"O rosto é uma política", diziam Deleuze e Guattari. Nas formações sociais ocidentais modernas e contemporâneas, o Estado implanta uma máquina de rostificar ao lado do corpo social; máquina que se apodera dele, que o rostifica inteiramente, reduz corpos a rostos, singularidades a identidades. O rosto é, sobretudo, o análogo, no corpo, da divisão entre sociedade e Estado. O rosto aliena a potência de um corpo da mesma forma como o Estado aliena o poder do corpo social - poder que as marchas das ruas nos fizeram redescobrir no mais profundo de nós mesmos. Segundo essa divisão, o corpo deve confinar-se ao privado; o rosto, porém, pertence ao público. Da mesma forma, a impotência remete ao privado (corpo inerme, rostificado), e o poder, ao Estado, que deseja eclipsar nas suas instituições a totalidade do espaço público, que permanece, como as ruas o provam, aberto, irredutível por definição, e jamais exclusivamente discursivo. Se, no espaço público, pudesse haver redução entre palavra e gesto, a palavra é que reconduziria ao gesto ou à ação. Pensar o contrário é, já, sintoma da eficácia dos poderes que convertem o corpo em rosto e os poderes que circulam no corpo social em monopólio do Estado.

Primeira operação: o Estado e sua máquina de rostificar tornam possível proibir ou criminalizar a dissimulação do rosto no espaço público sob argumentos muito convincentes, que nos fazem até mesmo desejar a sujeição de nossos corpos ao rosto que os poderes fabricam para nós. O Estado assinala e atribui a identidade unívoca de cada corpo e, reduzindo o corpo ao rosto, conjura a confusão das multidões indóceis, tenta anular o elemento ontológico e político irredutível que constitui sua potência específica: ser um corpo no qual nada se parece com um rosto; afinal, os primitivos cobriam-se de máscaras para atestar a pertença da cabeça ao corpo; nós, para desfazer o rosto e constituirmo-nos cabeças-pesquisadoras. Segunda operação: o Estado identifica mascarado e criminoso (segundo o léxico do poder, "se se esconde, é porque está devendo..."); serve-se da perversa naturalização da categoria do criminoso, pois, assim, pode-se negar-lhe direitos, capturando-o em um espaço exterior à lei - Amarildo, o pedreiro torturado, morto e "desaparecido" pela Polícia Militar do Rio não foi logo acusado de colaboração com o tráfico? Isso, "ser criminoso", não seria suficiente para justificar toda a ação ilegal da polícia?  Capturado fora das leis que assinalam o hipócrita pacto social,  o mascarado e o criminoso são, ao mesmo tempo, os sintomas mais superficiais da profunda crise desse pacto hipnótico. O efeito simbólico e político do "recurso ao pacto" é alienar toda possibilidade de pensamento ao código de suas razões, fazer-nos abdicar da crítica, que Foucault definiu como "a arte de não ser governado assim e a tal preço". Desfazer o seu próprio rosto, no Brasil de hoje, é resistir a abdicar da faculdade de pensar - não é nada fácil e implica o risco de ter, de novo, um corpo implicado na política.

Diante da eficácia da paz universal, que a polícia visa a assegurar mediante o uso da violência, como não apoiar que se revivifique a legislação da ditadura, se o mesmo Estado que cria uma identidade para os corpos identifica sua tática política com a categoria mendaz - mas praticamente eficaz - da subversão? No campo instável e aberto da desordem e da "subversão", como não ver que a polícia se torna o instrumento por excelência de governamentalidade para sobredeterminar situações fluidas, metaestáveis e de emergência? Isso porque a polícia, como as mídias e a videovigilância (seus aparatos técnico-sociais) são capazes de restabelecer o rosto, de reatribuir o rosto a quem ousou desfazer-se dele. Tudo o que coloca em xeque a ordem das coisas é violentamente conjurado. "A cada corpo, sua própria face" é a injunção do Estado. Nada de massas confusas, nada de corpos anarquistas e indisciplinados, nada de multidões sem rosto: mesmo fora de qualquer conceito de organização, o Estado continua a afirmar e enquadrar tudo o que ensaia sua fuga como organização "informal", disforme. Nesse caso, "Manifestação pacífica" coincide, ponto por ponto, com a abolição da política; coincide com os afetos da ordem, quando toda política é, no fim das contas, a possibilidade de criar uma outra ordem dos afetos. Toda ação política que combata a ideologia que aliena e sacraliza a violência como prerrogativa exclusiva de um Estado violento e de uma polícia assassina deve ser violentamente conjurado, pois desafia o Um, a sociedade dividida entre dominadores e dominados, ricos e pobres, exploradores e explorados, alienação do poder do corpo social ao Um transcendente do Estado. 

Com Negri, e para muito além dele, o que define as multidões é a recusa ativa do rosto em proveito das singularidades irredutíveis de um corpo social criativo, múltiplo, anônimo, potente, inclassificável e incoercível. Nessa guerra de guerrilhas entre corpos indisciplinados e rostos despóticos, as máscaras podem desempenhar, ainda hoje, a função que tinham para os primitivos que, muito antes de Nietzsche ou de Foucault, conheciam a guerra como relação social fundamental. Como atestam Clastres e Sahlins, a função da guerra nas sociedades primitivas era a de conjurar o aparecimento da forma-Estado na chefia, da sociedade dividida, da conversão irracional de suas sociedades de abundância e de lazer em e sociedades-para-a-acumulação. Sociedades centrífugas, que perseveram no seu ser-para-o-múltiplo. O Estado e o rosto são os antípodas da política - antes uma máscara diabólica para assegurar uma cabeça bem atarrachada ao corpo. No Brasil, as ruas assinalam muito mais que uma acumulação primitiva de democracia; marcam, em coextensão com ela, a emergência de uma nova noção de espaço público, completamente emancipada do Estado e para além de sua métrica: desejo de desfazer o rosto, de multiplicar o múltiplo, de ser-contra-o-Um.

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Por um movimento antidisciplinar dos movimentos

18 junho, 2013





         1. A estratégia de soberania - porrada, porrada e mais porrada eufemisticamente “não-letal”, prisões arbitrárias e para averiguação - deu errado. Seus ideólogos, do Estadão à Globo, de Alckmin a Pondé, da Folha a Haddad, rapidamente voltaram atrás numa demonstração do potencial deslegitimador de um movimento que, em profundidade, coloca em que xeque o próprio sistema político representativo, e o faz de maneira acéfala e horizontal. Numa guerra de posições, isso é uma vitória dos movimentos e uma derrota significativa dos “arrependidos”.

         2. Nos últimos dias, a mídia amenizou o discurso, mas isso não é uma vitória dos movimentos; é uma estratégia dos massmedia. Basta assistir ao GloboFuckingNews por alguns momentos para perceber o que está por baixo da espetacularização dos movimentos. Os analistas de primeira hora – que assistem a tudo pela tevê - não cessam de fazer proliferar clivagens e classificações; isto é, tentar individualizar e segmentar os corpos das ruas: há os manifestantes pacíficos, ordeiros, de bem, contra a corrupção (geralmente anti-Dilma e anti-PT) e os demais; há os manifestantes de início de protesto, que levam cartazes e faixas, que são da paz, que vestem branco, limpinhos, ordeiros, cívicos e os demais - vândalos, sujos e - esta teoria paranoide surgiu no DF, por exemplo – “provavelmente pagos para desestabilizar governos com atos de vandalismo e depredação dos patrimônios privado” (claro, este sempre vem antes) “e público”. Há os nacionalistas, que se enrolam imbecilmente em bandeiras, cantam o hino e acham que só ontem “o Brasil acordou para dar um basta"; de outro lado, os anarquistas antinacionalistas, os punks psolistas que não respeitam nada nem ninguém e só querem ver grassar a violência gratuita e injustificável.

         3. Essas tipificações infinitas e classificações morais são indiciárias de uma mudança concreta: alterou-se uma estratégia de violência baseada na soberania (porrada, repressão e espetáculo descontínuo de crueldade) para uma estratégica mais sutil de controle disciplinar (contínua e virtual), segundo a qual já não se torna mais necessário reprimir violentamente. Um pequeno e concreto exemplo de como tudo se passa - ao mesmo tempo, esse exemplo é o reflexo local de uma estratégia que, nas mídias, começa a circular globalmente. Ontem, no Rio, os que foram presos por atos de vandalismo o foram por policiais infiltrados no movimento. Ou seja, o Estado já não confronta: segue os fluxos, controla-os de perto e tenta axiomatizá-los; se não funciona, reprime quando eles estão na iminência de sair de controle. Eles "previnem a violência" virtual com violência efetiva.
         É na virtualidade do gesto que esse controle se aplica; não precisa depredar, basta esboçar o ato de pichação; não precisa atear fogo a um carro, basta que se ateie fogo a um monte de lixo. O controle e a repressão passam a ser exercidos localmente e têm por efeito criar uma clivagem disciplinar global entre “os bons manifestantes” – os que “são da paz”, se enrolam na bandeira do Brasil e cantam o hino – e os vândalos, criminosos, truculentos sem respeito por nada que devem ser reprimidos, inclusive em nome da suposta segurança dos demais manifestantes pacíficos. Esse sistema é em tudo análogo àquele que permite repartir os presos em presos de bom e mau comportamento; alunos disciplinados ou indisciplinados; doentes mentais que tomam seus remédios ou não.

         4. As televisões e jornais desdobram essas clivagens simbolicamente. Nas entrelinhas, dizem até como os manifestantes devem se vestir, como devem se portar, o que podem ou não fazer, ou dizer. O Batalhão de Choque espera ali próximo, mas invisível, já não os acompanha; por outro lado, há policiais militares que seguem os fluxos da multidão e reprimem os fluxos desorganizantes; os policiais de trânsito “fazem a segurança do movimento” – na verdade, ordenam que se vá mais ou menos rápido porque “já é hora de liberar a rua” - e isso ficou claro em Curitiba, tarefa dada a policiais à paisana.
         Junto com uma potência de desordem e contestação, surge um rígido código de ética e disciplina, mas ele não é auto-organizado e gerido pelos movimentos das ruas e sim pela violência sutil e insensível dos signos que vêm de fora. “Vista branco”, “faça protesto limpinho”, “faça protesto ordeiro”, “seja da paz”, “não provoque os policiais”, “não xingue a mãe do governador”, “não piche o palácio do governo”, “não beba antes, durante ou depois”, “cante o hino”, “peça isso”, “demande aquilo”.

         5. Como esse código disciplinar entra em um movimento? Pela via demasiadamente real do simbólico. Ontem à noite, no GloboFuckingNews, a jornalista Mariana Godoy defendia os manifestantes pacíficos afirmando que “estavam conscientes de que deveriam se manifestar pacificamente a fim de não deslegitimar o movimento”. Isso só mostra o grande medo, o grande terror que a multidão, que precisa ser contida ou disciplinada, inspira no poder. Ora, o que o mea culpa de Pondé, Jabor, Alckmin, Globo, Haddad e suas cáfilas jornalísticas e políticas provam é, justamente, que os movimentos se autolegitimam. Eles são o único e imanente critério de legitimidade, não o Estado, não a mídia, nem nenhuma forma crítica transcendental. Isso é pós-revolta, refechamento do aberto.
         A mídia tenta, desesperadamente, se reapropriar da cisão que os protestos de quinta-feira (14.06) criaram: surgiu um fosso entre a opinião pública real, das ruas, e a opinião pública que as mídias tentam axiomatizar. Por que as mídias passaram a apoiar os movimentos? Porque as ruas criaram essa cisão, explodiram as margens de crítica social que as mídias não cessam de tentar controlar, e as redes sociais – que também são um instrumento de controle e vigilância – terminaram por instrumentalizar essa explosão em uma geração de jovens de 14 a 28 anos desacostumada a ver televisão ou a ler jornais. “A única forma de vencê-los é, então, juntando-se a eles; fazendo-os passar para o nosso lado, passando para o lado deles”, teriam pensado as mídias.

         6. Eis toda a conversão das estratégias de soberania das primeiras semanas em estratégia disciplinar sutil e docilizadora – por essa razão, mais insidiosa e perigosa. O vocábulo revolta, repentinamente, saiu de circulação e se tornou “protesto” ou “manifestação”. O que está acontecendo nas ruas é, sem dúvida, uma acumulação primitiva de democracia, é impossível negar. E ela surge sobretudo sob a insígnia forte do direito à cidade e da reapropriação do espaço público; com as repressões, a pauta logo se altera para incluir, contra a soberania, a reapropriação do direito não apenas à livre manifestação, mas à circulação e ao espaço público. Um sem número de pessoas, nas redes sociais, postou seus relatos de participação nos movimentos das ruas; muitos orgulhosos de seu próprio pacifismo e nacionalismo, de terem seguido o código de ética e disciplina que os poderes impuseram. Mistificação, engodo, estratégia de despotenciação e disciplina dos corpos indóceis e inúteis. Tentativa de conter a revolta profunda de todos os corpos, de obturar a emoção criadora e de obliterar as emergências de uma comunidade de eus profundos. A repressão torna-se desnecessária quando assimilada, introjetada nas almas e transformada em exercício de subjetividade, pelo qual nos distinguimos dos outros e nos erigimos acima deles. As mídias tentam forjar um simulacro de opinião pública e, para tanto, procuram funcionar como instância de exame disciplinar.
         Hoje, quando as disciplinas parecem retomar sobre os corpos um controle tanto mais insidioso quanto eficaz, trata-se de, contra a disciplina, exercer o direito à revolta, o direito a liberar o poder que circula nos corpos, nas ruas e no espaço público do qual os movimentos já se reapropriaram. Na noite de ontem, por todo o Brasil, algumas manifestações entraram pela madrugada. Trata-se, agora, de ocupar, de tornar a revolta contínua: nada de horários, trajetos, rotas, código de conduta imposto como “etiqueta do manifestante de bem/da paz/cidadão brasileiro”. Como quisera Oswald de Andrade, apenas “roteiros... roteiros... roteiros... roteiros...”. Nenhum nacionalismo faz sentido porque nós somos, hoje, o efeito de acúmulo local de uma demanda global: basta de democracia representativa significa que desejamos mais! Queremos tudo. Conquistar o Estado é ainda muito pouco. Os manifestos de apoio às revoltas locais mundo afora são indiciários dessa globalidade.

         7. Quando Foucault dizia “não caia de amores pelo poder” significa, entre outras coisas, “não renuncie àquilo que um corpo pode”; “cuide de não desejar sua própria sujeição”, seu próprio aniquilamento ou domesticação. A liberdade só deixa de ser um conceito abstrato na medida em que se converte em revolta profunda e real. Eis toda a barbárie, que Renato Janine Ribeiro crê denunciar – mas, curiosamente, são raros os momentos em que ele identifica essa barbárie do lado do Estado e da “autoridade”. Diz ele que "Quem for violento perde o apoio da sociedade”, como se os movimentos sociais fossem algo diferente da própria sociedade. O tira na cabeça de Janine também quer fazer o exame, quer fazer a sociedade transcender os enxameamentos constituintes da multidão nas ruas – gesto filosófico que, ao que tudo indica, dá direito a publicar no clipping do Ministério do Planejamento.
         Seja como for, o momento é de cuidado político: identificar e rasurar, com a fina lima da prudência, esse código de ética e disciplina que impuseram à revolta profunda de todos corpos. Isso não se faz sem insurgência, sem se rebelar contra a própria possibilidade de ter nossos corpos indóceis e inúteis ainda uma vez docilizados e utilizados por quem quer que seja – o Estado ou o tira(no) na cabeça de Renato Janine Ribeiro. Eis o que causa o grande medo dos aparelhos de Estado: a mais profunda indisciplina. As lutas também se constituem, a partir de agora, por um movimento antidisciplinar que deve se tornar imanente aos próprios movimentos: jamais renunciar àquilo que podem os corpos. Cuidar de produzir continuamente sua insurreição e seu carnaval.

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Indóceis e inúteis: o que podem os corpos?

15 junho, 2013




Primeiro foi Porto Alegre; depois, Natal, São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro... Uma multidão de corpos indóceis e inúteis impede as vias públicas, para o tráfego eternamente estagnado das seis da tarde das grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns –, em nome da liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito – por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes cidades em um movimento meta-regional interromperam os fluxos do capital que as sucessivas isenções de IPI tornaram possível. É a potência e a virtù desses corpos indóceis e inúteis, insubmissos e nada comportados, que constitui o princípio de desarticulação das estratégias de poder que se dissimulam sob a questão da tarifa do transporte público nas grandes metrópoles. Eis o que torna urgente tentar lançar luzes sobre os protestos que se espalham pelo Brasil, para muito além das frases efectistas e midiáticas, das gritas reativas de um Arnaldo Jabor – ou de qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa os postos discursivos por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica social.
As vidraças quebradas – alvo aparentemente preferido desses corpos anarquistas – forma, ao lado das máscaras de “V, de Vingança” e do lixo incendiado,  o conjunto das grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes e reais – das passagens revoltas dos corpos pelas cidades. Eis alguns dos signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície que visa a romper com os quadros de inteligibilidade dados, e enxergar um pouco além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, parece ser meramente acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a coragem crua desses corpos se tornou depositária.
As vidraças estilhaçadas – nem sempre pelos manifestantes – nada mais são do que o acontecimento de superfície de um atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens virtuais de seus gestos; basta um esboço ou um descuido para que o poder que transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando cotidiana e continuamente, em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis. À luz das patologias da normalidade que o poder implanta no coração das subjetividades que produz, tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após um dia extenuante de trabalho só poderia significar um atentado à liberdade dos “cidadãos de bem” – esses efeitos do poder – que se comprazem em se comprimir uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos das metrópoles ou no interior dos coletivos abarrotados; porém, esta não passa da perspectivação do fenômeno pela sensibilidade estrábica dos doentes de normalidade, os sujeitos constituídos pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as vidraças estilhaçadas, deixadas para trás pelos corpos revoltos, não seriam, também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais e inindividualizáveis?
Não se trata de fazer um elogio da violência; porém, tampouco se trata de sacralizá-la nas ilegalidades cometidas pelas Polícias e pelos Estados pseudodemocráticos – como o Brasil revela ser. O poder circula pelos corpos das multidões. Assim como ele explode contra elas, nas ações criminosas legalizadas em aparência pelas formas jurídicas do Estado e do capital-dinheiro, ele explode a partir delas também. É nesse sentido que Negri pudera afirmar que um protesto pode ser não-violento, mas jamais será pacífico – é com o poder que circula nos corpos que os contra-poderes, até então sujeitados, produzem sua rebelião profunda e mística.
Esses corpos indóceis usam máscaras. “Estratégia de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados” – logo dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público não consiste em outra coisa senão na mais radical afirmação de democracia – especialmente quando um Estado que se pretende democrático reprime tão sistematicamente qualquer manifestação pública que não deixa outra alternativa a seus cidadãos senão a de dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o enxame amorfo que pouco a pouco receberá o nome impronunciável, impessoal e politicamente monstruoso de multidão. Dissimular o rosto: a única forma de pela qual essa multidão pode reapropriar-se do espaço público quando toda forma de dissidência parece ter se tornado virtualmente impossível. Tecida apenas de singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela revolta profunda dos corpos que relança suas potências, que ocupa as ruas, negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos agora libertos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos dos aparatos de poder das disciplinas. Romper seu princípio de transparência (as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele verminal, a repartição maquinal em que o poder seleciona ativamente certas ilegalidades para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de Soberania. Eis a macro-operação de poder capitalística que cobre com o véu da legalidade o infinito mapa de ilegalidades que essa comunidade de eus profundos coloca em questão: da máfia dos transportes públicos, à das montadoras de automóveis; da máfia dos empresários do petróleo às atitudes censoras que constituem a práxis da mídia; das violações de direitos civis que o Estado a Polícia cometem sistematicamente às ilegalidades do direito de exceção que já vige no país, mesmo antes da realização dos “grandes eventos”.
Quando os corpos destroem o princípio de controle sutil a que se encontravam submetidos – as disciplinas infinitesimais que produzem o sujeito e sua belle âme, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem o normal e o anormal –, tudo o que resta aos poderes constituídos é fazer valer as estratégias de prerrogativas de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do soberano), não poderiam prová-lo melhor – aplicar à massa informe, rebelde e perigosa na qual os indivíduos dóceis subitamente se converteram as prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas fustigadas pelos contrapoderes que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social – superfície construída por mil e uma microssujeições (como viajar em ônibus lotados, pagar mais do que um serviço público vale, dar-se conta dos lucros astronômicos dos empresários do setor de transportes, conhecer as grandes ilegalidades convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas e “naturais”...) – não cessam de se acumular e renovar nossas potências rebeldes, os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e, do ponto de vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los, inúteis.
Na medida em que, contra o Estado, produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital, pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de controle – é desejo esquizo, potência revolucionária. Rebelando-se contra as disciplinas, todos os corpos poderão, um dia, descobrir-se profundamente anarquistas, questionando a repartição do lícito e do ilícito a partir das ações borderlines como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos signos.
O lixo incendiado é o signo último desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração capitalista amontoa e produz sem cessar; de outro, o princípio incendiário e contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela também é, de alguma forma, um dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso, indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – os espaços públicos coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de pensar para o mercado. Uma forma de reabrir o que parecia fechado, de combater o fechamento e as estases que o poder produz nos corpos sujeitados. Impedindo o trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz: “Desculpe o transtorno. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis tentam precipitar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que jamais cessa de estar em jogo – mesmo quando os corpos cedem ao poder. O devir é o princípio vital, virtual e inorgânico que essas indomáveis existências políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e a afetar irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu, e produz, como seus dejetos cotidianos: sujeitos, resto ao lado. Viva a rebelião profunda de todos os corpos: saímos às ruas e só encontramos máquinas desejantes, potências selvagens, tesão político. Precipitar as formas de vida no devir: o que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.

* Originalmente publicado no site da Universidade Nômade: <http://uninomade.net/tenda/indoceis-e-inuteis-o-que-podem-os-corpos/>




Notas sobre a revolta profunda dos corpos

10 junho, 2013



A liberdade dos homens não é jamais assegurada pelas instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por esta razão que quase todas as leis e instituições podem ser subvertidas. Não porque sejam ambíguas, mas simplesmente porque liberdade é aquilo que deve ser praticado.
 Michel Foucault.


            O que os protestos pelo fim das tarifas no transporte público, pelos direitos humanos (do Levante Popular da Juventude às Marchas contra Feliciano), pelos direitos reprodutivos das mulheres, pela liberação sexual e de gênero, dos professores - pela educação e por melhores condições de trabalho -, ou pela legalização da maconha, para ficar só com alguns exemplos, revelam que é urgente distinguir o tedioso conceito de revolução da revolta profunda de todos os corpos. Nada mais de confundir revolução com revolta, conceitos e práxis que jamais coincidem. Embora já esteja nas ruas desde Seattle, o manifesto político do século XXI ainda está por ser escrito, e ele será algo como uma fenomenologia da revolta. Uma fenomenologia da revolta como ontologia da liberdade. Mas, antes de escrever, às ruas.
         Lançar os corpos na rua e gritar "3,20 é roubo!", ou "Ilegal deveria ser essa sua cabeça conservadora", é o gesto que desloca a cisão legalidades/ilegalidades que funda as formas jurídicas consolidadas. Toda revolta é a recusa profunda, afetiva, vital dessa partição do lícito e do ilícito. Por isso, ela margeia estrategicamente o ilícito, vaga em seus limiares indecisos e excepcionais. A mídia trata o borderline do (i)lícito como crime a priori. Por sua vez, Haddad defende a ação violenta da polícia e aconselha os manifestantes a renunciarem à violência como condição do diálogo - violência a que o Estado jamais renuncia. Por isso, a atitude de Haddad é cínica. É a polícia e o Estado que devem renunciar à violência e à repressão como condição do diálogo. Se a violência pode ser exercida pelo Estado, seu titular ainda é a massa indecisa, inconsciente e confusa que o Estado tenta territorializar no conceito de Povo. Por isso, poupemo-nos da sacralização da violência; nada mais de cultos ao Estado de Direito, e nada mais de sujeição às formas jurídicas que "recobrem o grande mapa das ilegalidades". A gramática da defesa dos direitos também tem seu limite, e os direitos derivam da forma pura e vazia da lei que se trata de questionar.
         Se a verdade profunda dos corpos é a de serem profundamente anarquistas - e de não cessarem de sê-lo sob todas as camadas de ideologia -, o que a revolta profunda dos corpos produz é uma inequação que joga o caso contra a lei; a singularidade concreta contra o universal abstrato. Rebelião do caso contra as ilegalidades que a lei tornou convenção e hábito disciplinar. O Movimento pelo Passe Livre está se batendo precisamente contra esse limiar em que a lei formaliza e cobre o mapa das ilegalidades - a lei, esse efeito do poder que jamais escapou a Foucault. Então, não o condene só porque você prefere reclamar (impotentemente) da corrupção assistindo ao telejornal; não o censure só porque você não tem coragem de ir às ruas e enfrentar a porrada deste Estado protofascista que é São Paulo - mas também todos os outros - armado, no mais das vezes, só da coragem de um corpo anarquista que reivindica sua potência contra o poder.

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Subtrair o corpo: NÃO ao Estatuto do Nascituro

06 junho, 2013




1) Todo projeto que dê às mulheres mais liberdades e opções de vida do que elas dispõem hoje será sempre bem vindo; então, não sou eu quem vai desmerecer nenhuma proposta de assistência social à mulher vítima de estupro; porém, confundir o Estatuto do Nascituro com “uma proposta de assistência social à mulher vítima de estupro” é um erro grave. Não é disso que se trata, infelizmente.

2) Toda a atenção da mídia e das pessoas nas redes sociais esteve voltada nos últimos dias ao que tem sido chamado de "Bolsa-Estupro"; vi que mesmo alguns de meus amigos e amigas feministas cederam à gramática do opressor; recusaram o “Bolsa-Estupro”. Essa nomenclatura visa, estrategicamente, a deslocar nossa atenção do que efetivamente está em jogo. Vocês bem o perceberam - mas não cedam à gramática do poder. A assistência social não é, nem pode ser, o ponto central dessa discussão.

3) O PL 478/07 não atribui à mulher a liberdade de optar entre abortar nos casos legais ou não, com assistência social e financeira do Estado no último caso. Ao lado da criação de uma malha com aparência de proteção social, o texto do PL 478/07 criminaliza até mesmo formas culposas de interrupção da gravidez (art. 23); criminaliza a pesquisa com células-tronco embrionárias (art. 25); restringe a liberdade de manifestação e de expressão do pensamento político (art. 28) e utiliza o Direito Penal de forma sórdida e intolerável - como mecanismo de ortopedia moral (arts. 26 e 27). Sobretudo, impede-se o aborto axiologicamente (em “favor da vida”). O art. 12 (longe do seio do núcleo penal do Projeto de Lei) pode, sem dificuldades, sugerir a revogação tácita dos casos legais de aborto hoje admitidos, como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro, ou o terapêutico.

Recusemos – e agressivamente, se necessário – o Estatuto do Nascituro porque ele impõe à mulher uma opção que só cabe a ela fazer; porque ele representa um retrocesso desmedido em matéria de direitos e garantias fundamentais, como em matéria de direitos reprodutivos e da mulher; porque ele criminaliza a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, a utilização da pílula do dia seguinte (mesmo por mulheres estupradas), bem como a pesquisa com células-tronco. Lembrem-se do conselho de Foucault: "não caia de amores pelo poder". Recusemos as estratégias do poder e, com elas, também a sua gramática disforme, que não passa de um efeito do poder.

É por isso que eu digo não ao Estatuto do Nascituro. Pelo direito de subtrair meu próprio corpo aos cálculos do biopoder.

P.S.1: antes de me xingar covardemente nos comentários, é mister ler o texto do Estatuto do Nascituro ~ http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=443584&filename=PL+478/2007

P.S.2: Roga-se não rezar nem antes, nem depois, nem com o Navalha de Dalí aberto. Grato.


P.S.3: o blogueiro é ateu praticante, mas o blog é laico. 

Anistia e as ambivalências do cinismo: a ADPF 153 e micropolíticas da memória

29 maio, 2013



Anista e Ambivalências do Cinismo:A ADPF 153 e Micropolíticas da Memória
Murilo Duarte Costa Corrêa, 116 pgs. 
Publicado em: 29/5/2013 
Editora: Juruá Editora
ISBN: 978853624256-9
Preço: R$ 29,90


Com apresentação de Pádua Fernandes e prefácio de Deisy Ventura, a Jurua Editora publicou uma bela edição de meu pequeno "Anistia e as Ambivalências do Cinismo: a ADPF 153 e micropolíticas da memória", trabalho premiado em 2011 pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e pela Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação.

“O autor defende nestas páginas uma tese muito importante sobre a Lei de Anistia brasileira de 1979: a de que, com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito, “uma lei de transição – o que não passa de um eufemismo para exceção –, está em vias de superpor-se à nossa Constituição”.
Claramente influenciado pela pergunta (e pela muitas vezes citada obra de referência que a ela responde) de Edson Teles e Vladimir Safatle, ‘O que resta da ditadura?’, Murilo procura burilar uma nova esfera desta indagação, mobilizando autores pouco trabalhados no campo da chamada “justiça de transição”. É da inovação que derivam, provavelmente, alguns trechos herméticos ou enigmáticos, e alguns voos inconclusos do texto. Não obstante, muito me alegra que seu trabalho tenha desaguado na constatação tanto do fascismo nosso de cada dia, como da urgência: ‘não se pode afirmar a existência de qualquer justiça de transição, e tampouco podemos maldizer uma herança autoritária: não podemos dizer que herdamos a exceção se nunca deixamos de reproduzi-la, mesmo no esteio de um compromisso democrático. É isso o que torna nossa tarefa urgente’, diz Murilo neste livro.”

Deisy Ventura
Professora Associada (IRI/USP)


“Em Anistia e as ambivalências do cinismo, de Murilo Duarte Costa Corrêa, teríamos, à primeira vista, somente mais um estudo de biopolítica que parte de Agamben e de Deleuze para pensar o direito. No entanto, esta obra se destaca pela novidade de pensar a lei de anistia da ditadura militar brasileira, lei nº 6.683 de 1979, nesse quadro teórico, e pela escolha coerente de seu referencial teórico, para que são convocados Bergson, por sua teorização sobre a memória, e Vladimir Safatle, no tocante ao cinismo, bem como Derrida e Walter Benjamin. Trata-se, pois, de um livro com um perfil muito original na nascente literatura sobre justiça de transição no Brasil.”

Pádua Fernandes
Professor do Curso de Direito (UNINOVE/SP)


Sinopse:
Anistia e as ambivalências do cinismo: micropolíticas da memória" é um conjunto de estudos que resulta de uma distensão concreta de uma filosofia do direito na imanência. Tomando por epicentro a recente reabertura dos debates sobre a questão da anistia no Brasil – devida, sobretudo, ao gesto simbólico do Conselho Federal da OAB ao propor a ADPF 153 junto ao STF – estes ensaios revelam progressivamente o que está posto em jogo sob a questão da anistia no Brasil contemporâneo. Para tanto, a experiência anistiadora brasileira é tomada como nó problemático concreto interrogado sob a perspectiva da filosofia da diferença, composta pelos entrecruzamentos de linhas muito heterogêneas que lhe concernem e que se estendem de Foucault a Agamben, de Deleuze a Negri – direções em que este livro excede as referências canônicas sobre o tema. Premiado nacionalmente pela Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação e pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2011, o presente trabalho é indispensável para aprofundar as reflexões de pesquisadores, profissionais e cidadãos sobre as consequências éticas, jurídicas e políticas da questão da anistia no Brasil contemporâneo e dos desafios impostos à consolidação democrática pós-ditadura pela conservação de espectros autoritários.

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