Direito e Ditadura: PET-Direito/UFSC

26 agosto, 2010







Leonardo D'Ávila, Alexandre NodariFlávia Cera e eu, vamos. E você...?
  
O Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina promoverá, entre os dias 25 e 29 de outubro de 2010, o Seminário Direito e Ditadura, visando ao intercâmbio multidisciplinar de conhecimentos, ao debate de ideias e à criação de espaços críticos de diálogos entre aqueles que se interessam e estudam o tema. 
O evento contará com conferências, mesas de debate, painéis e também com uma mostra de trabalhos, apresentados na forma de comunicações orais e, posteriormente, publicados em anais na forma de artigos científicos.


1. Do Seminário

1.1 O Seminário Direito e Ditadura será realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, entre os dias 25 e 29 de outubro de 2010. Trata-se de evento público, gratuito e aberto à participação de todo e qualquer interessado.


2.  Do recebimento de trabalhos e da inscrição no Seminário


2.1 Os trabalhos recebidos serão agrupados de acordo com critérios de afinidade temática, com vistas à organização de grupos de discussão durante o evento. 

2.2 Os resumos aceitos para apresentação na forma de comunicações orais, efetivam automaticamente a inscrição de seus autores no Seminário Direito e Ditadura, tendo esses preferência às vagas de alojamento. 


3. Das inscrições de trabalhos

3.1 Para participar das atividades da Mostra de Trabalhos do Seminário Direito e Ditadura, os interessados devem enviar o resumo de seus trabalhos (vide seção 4 - Dos resumos) para o endereço   até o dia 03 de outubro de 2010. O corpo do e-mail deve conter nome completo, telefone e instituição de procedência do(s) autor(es); devendo o campo assunto ser preenchido com os dizeres “Resumo – Mostra de Trabalhos – Direito e Ditadura”.
3.2 Os trabalhos devem estar relacionados à temática geral do Seminário, de acordo com os seguintes eixos temáticos:
I) Memória, direitos humanos e justiça de transição: Políticas de memória. História da tortura. Movimentos de direitos humanos. Análises comparadas de modelos de justiça de transição. Leis de Anistia. Direito à memória. Direito internacional sobre direitos humanos. Os militares e o debate da anistia.
II) Direito, exceção e ditadura: Direito e política dos regimes autoritários. Estado de exceção. Totalitarismo. Fundamentação filosófica e teórica das ditaduras. Uso da violência contra o estado ilegítimo. A subjetividade sob as ditaduras.
III) Arte, cultura e a resistência: Grupos de resistência aos regimes militares. As manifestações artísticas de resistência. Política cultural das ditaduras. Censura. A literatura e as ditaduras.
IV) Os regimes autoritários na história e na história do direito: Ditaduras na história do direito. Historiografia do regime militar. As interpretações históricas da ditadura. Convergências e diferenças entre as ditaduras. História comparada. Ditaduras na América Latina e no Brasil.
V) Ditaduras e relações de gênero: A resistência feminina. Circulação das teorias de gênero sob as ditaduras. Cinema, gênero e censura. Perseguição às mulheres nas ditaduras. Homossexualidades e ditadura.
VI) Os reflexos das ditaduras nas sociedades contemporâneas: Reflexos das ditaduras no Brasil e na América Latina contemporâneos.
3.3 Será permitida a inscrição de apenas um trabalho por autor, sendo permitida a submissão individual ou em coautoria.
3.3.1 Somente constarão nos anais os trabalhos que forem efetivamente apresentados pelos autores e devidamente encaminhados dentro dos prazos de entrega.
3.4 Podem inscrever-se alunos de graduação e pós-graduação que desenvolvam pesquisa nas áreas citadas no ponto 3.2, bem como bacharéis, mestres e doutores.
3.5 A seleção de trabalho para ser apresentado no evento dá direito ao certificado de apresentação de trabalho, publicação do trabalho completo nos anais do evento e recebimento dos anais com os trabalhos completos.
3.6 A publicação dos trabalhos completos nos anais do Seminário será regulada por edital próprio, encaminhado aos autores que tiverem seus resumos aprovados para apresentação na Mostra de Trabalhos.
3.7 Ao enviar seu resumo, o pesquisador cede seus direitos autorais ao PET-Direito, que poderá divulgá-lo de forma gratuita em qualquer tipo de mídia.


4. Do resumo

4. 1 Os resumos enviados (v. Item 3.1) deverão conter:
I) Título em letras maiúsculas;
II) Mone completo do(s) autor(es) e Titulação;
III) E-mail e telefone dos autores e link para currículo em plataforma lattes, caso possua;
IV) A indicação da instituição de fomento à pesquisa, caso presente;
V) Resumo em até 2 (duas) páginas;
VI)Palavras-chave ( no máximo cinco).
VII)Eixo temático (v. Item 3.2)
4.2 A relação dos resumos selecionados para a apresentação oral será divulgada até o dia 12 
de outubro de 2010, por e-mail endereçado aos autores e também no site


5. Da apresentação

5.1 A exposição oral dos trabalhos se dará nas tardes dos dias 27 e 28 (quarta e quinta-feira) de outubro de 2010, integrando a programação do Seminário Direito e Ditadura, podendo haver alterações nos horários e datas, a critério da organização do evento.
5.2 A duração das exposições é de 15 minutos por trabalho, podendo haver debate na sequência das apresentações ou, ao final, debate global.
5.3 Em caso de coautoria, far-se-á suficiente a presença de pelo menos um dos autores no momento da exposição.


6. Disposições finais

6.1Qualquer alteração realizada neste edital será comunicada em tempo hábil e estará disponível no site .
6.2 O presente Edital ficará à disposição dos interessados no site
6.3 As questões não previstas neste Edital serão resolvidas pelos membros do Programa de Educação Tutorial em Direito da UFSC e as solicitações de esclarecimentos adicionais deverão ser formalizadas pelo e-mail
6.4. Não haverá prorrogação do prazo para o envio de trabalhos.


Anexo - Comissão Científica
 
A Comissão Científica é constituída pelos coordenadores do evento, pelos membros do Programa de Educação Tutorial e por demais pesquisadores convidados.
 
Coordenadores do Seminário Direito e Ditadura:

- Profa. Dra. Jeanine Nicolazzi Philippi (Doutora em Direito pela UFSC. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Tutora do PET-Direito-UFSC)
- Prof. Dr. Lédio Rosa de Andrade (Doutor e Filosofia Política, Jurídica e Moral pela Universidade de Barcelona. Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina)
 
Membros do Programa de Educação Tutorial em Direito da UFSC:
 
- Ana Carolina Ceriotti (Acadêmica de Direito da 5ª fase)
- Ana Paula Borges Martins (Acadêmica de Direito da 7ª fase)
- Carolina Duarte Zambonato (Acadêmica de Direito da 10ª fase)
- Elysa Tomazi (Acadêmica de Direito da 6ª fase)
- Felipe Dutra Demetri (Acadêmico de Direito da 5ª fase)
- Guilherme Félix Coimbra Cardoso (Acadêmico de Direito da 7ª fase)
- Helena Kleine Oliveira (Acadêmica de Direito da 8ª fase)
- Lucas Gonzaga Censi (Acadêmico de Direito da 5ª fase)
- Marcel Soares de Souza (Acadêmico de Direito da 10ª fase)
- Marja Mangili Laurindo (Acadêmica de Direito da 2ª fase)
- Pedro Eduardo Zini Davoglio (Acadêmico de Direito da 8ª fase)
- Rafael Cataneo Becker (Acadêmico de Direito da 8ª fase)
- Rodrigo Alessandro Sartoti (Acadêmico de Direito da 5ª fase)
- Victor Cavallini (Acadêmico de Direito da 3ª fase)
- Victor Porto Cândido (Acadêmico de Direito da 6ª fase)
 
Demais pesquisadores convidados:

- Alexandre Nodari (Mestre e doutorando em Letras pela UFSC. Co-editor do jornal de resenhas e verbetes SOPRO).
- Ana Maria Veiga (Mestre e doutoranda em História pela UFSC. Pesauisadora do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC)
- Fernando José Caldeira Bastos Neto (Acadêmico de Graduação em Direito da UFSC. Monitor da disciplina de Teoria do Direito I)
- Fernando Nagib Marcos Coelho (Mestrando em Teoria, Filosofia e História do Direito pela UFSC. Pesquisador do Grupo História da Cultura Jurídica)
- Flávia Cera (Mestre e doutoranda em Letras-UFSC. Co-editor do jornal de resenhas e verbetes SOPRO)
- José Carlos Mendonça (Mestre em Sociologia Política pela UFSC e doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp. Pesquisador junto ao Laboratório de Sociologia do Trabalho – LASTRO/UFSC)
- Leonardo D'Ávila de Oliveira (Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC)
- Letícia Garcia Ribeiro Dinyewicz (Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC. - Professora do Curso de Direito da Uniestácio. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura.
- Liliam Litsuko (Mestranda em Direito pela UFSC. Membro do NEPE – Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias)
- Marina Delgado Caume (Acadêmica de Graduação em Direito da UFSC. Pesauisadora do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura)
- Michel Goulart da Silva (Mestrando em História pela UDESC. Membro do corpo editorial das Revistas "História e Luta de Classes" e "Contra a Corrente")
- Moisés Alves Soares (Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC)
- Murilo Duarte Costa Corrêa (Professor da Faculdade de Direito de Curitiba - DPD/FD/UNICURITIBA. Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná – FD/CCSA/FESP-PR.)
- Virgínia Hinojosa Valdez (Mestranda em História pela UFSC)

Este Edital entra em vigor na data de sua publicação.


Florianópolis, 3 de setembro de 2010.

Programa de Educação Tutorial em Direito



Universidade Federal de Santa Catarina


Aforismo # 7: para o twitter que nunca terei

21 agosto, 2010




Sábado. A velocidade consome o tempo, e o tempo faz falta. Paisagens imóveis não deixam de passar – passam devagar.  Roídas por dentro, as janelas assistem à doce urgência das rugas no rosto da moça.



Um supereu para a sociedade de consumo, por Vladimir Safatle

18 agosto, 2010


Um supereu para a sociedade de consumo :
obre a instrumentalização de fantasmas como modo de socialização

 Vladimir Safatle

Era como se alguém estive atrás de mim com
 um porrete, gritando: “Você precisa estar feliz!
Você precisa estar feliz!”
Schostacovich

A própria insatisfação tornou-se mercadoria
Guy Debord

Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, através do mesmo dispositivo, a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud deparou-se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga medida. Hoje, as páginas doMal estar na civilizaçãoque tratam de tal imbricação são arqui-conhecidas. “Toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional”[1]é uma frase que ressoou como programa crítico durante todo o século XX, vide, por exemplo, a promessa utópica de reconciliação entre exigências pulsionais e formações sociais que animouEros e civilização,de Herbert Marcuse.
        A grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa; relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de observação”, no caso, o supereu resultante desta identificação parental. Isto faria com que toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional provocasse, necessariamente, um sentimento de culpa advindo da pressão sádica do supereu sobre o eu. Sentimento de culpa que não deixa de provocar, como benefício secundário, um modo neurótico de gozo.
Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente opera com uma perspectiva unívoca na compreensão da multiplicidade das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a pressuposição de uma espécie de princípio de similaridade estrutural entre a autoridade familiar e a autoridade que suporta outros vínculo sociais, como os vínculos religiosos ou políticos[2]. Tal similaridade entre esferas aparentemente autônomas de valores (família, religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta a função paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que determina o princípio geral de estruturação do universo simbólico. Nào se trata de tentar derivar as ordens simbólicas a partir do núcleo familiar, mas de insistir no fato de que problemas de socialização do desejo no interior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o núcleo familiar, trazem necessariamente tensões de socialização em esferas mais amplas. Isto abre o caminho para Freud afirmar que o sentimento de culpa: “seria o mais importante problema no desenvolvimento da civilização”[3], e não simplesmente no desenvolvimento da família burguesa.
      De fato, tudo isto é praticamente um lugar comum atualmente. Mas algumas modificações substanciais ocorreram em certos processos de socialização e elas fazem com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Este ponto não deve nos estranhar pois, se o supereu tem sua gênese exatamente a partir dos processos de socialização, se ele é : “uma manifestação individual ligada às condições sociais do edipismo”[4], então ele necessariamente se modificará na medida em que tais processos se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques Lacan e a Escola de Frankfurt perceberam claramente ao pensar as incidências clínicas de uma modificação histórica maior bem definida por críticos conservadores da modernidade : o advento de uma espécie de “socidade não-repressiva” vinculada à universalização das práticas de consumo. Para entender o significado e alcance de tais elaborações, valeria a pena darmos um passo para trás.

Agamben e Foucault e Tiqqun e...

12 agosto, 2010

(principium individuationes)

No vídeo abaixo, Giorgio Agamben apresenta Contributions à la guerre en cours, de Tiqqun, livro publicado em França por Éditions La Fabrique, que reúne três textos atribuídos ao coletivo impessoal Tiqqun. São eles "Introduction à la guerre civile", "Une métaphysique critique pourraît naître comme science des dispositifs" et "Comment faire ?". Não encontrei o vídeo com legendas, então, para resolver o problema com a língua, posto abaixo uma rápida mas – espero eu – fiel síntese das principais ideias conceituais  articuladas na apresentação de Agamben. Não se trata, contudo, de uma  pura e simples tradução, embora o vídeo merecesse, uma vez que me parece uma apresentação nodal de Agamben, que lança luzes inclusive sobre certas acusações de "universalização" do conceito de biopoder. Remeto, ainda, ao recente post do texto de Agamben sobre o caso Tiqqun, traduzido em português. Finalmente, a quem quiser obter rápidas informações sobre o contexto do aparecimento-desaparecimento de Tiqqun em França, sugiro consultar esse pequeno verbete na en.wikipedia.






Em uma das aulas do mês de janeiro, no curso do ano de 1984 (Le courage de la verité: le gouvernement de soi et des autres II), Michel Foucault resumira, segundo Giorgio Agamben, sua estratégia a dois pontos: (1) substituir a história da dominação por uma análise dos procedimentos e técnicas de governamentalidade; (2) substituir a teoria do sujeito e a história da subjetividade pela análise de processos de subjetivação e das práticas de si. Dessa forma, segundo Agamben, Foucault abandonava os universais vazios que até então monopolizavam a atenção da teoria política – leiam-se, os conceitos de lei, soberania, vontade geral etc. – em benefício de uma análise detalhada de práticas e de dispositivos governamentais. Assim, enfocava-se mais do que o poder como hyposthase (substância, fundamento) separada, as relações de poder; mais que o sujeito transcendental, na posição fundadora, uma análise pontual de práticas e de processos de subjetivação.
      É a esse quadro conceitual problemático, extraído do último curso ministrado por Foucault, que Agamben deseja fazer remontar o acontecimento Tiqqun. Sua novidade estaria em radicalizar e, ao mesmo tempo, nublar as duas estratégias foucaultianas que, em Foucault, não permitem a adequada localização de seu ponto de junção. Se na microfísica foucaultiana o poder circula por dispositivos jurídicos, linguísticos, materiais etc., para Tiqqun o poder não é nada mais do que essa circulação em que o poder não é endereçado à sociedade civil, mas coincide inteiramente com a sociedade e a vida: “O poder não é mais do que um imenso acúmulo de dispositivos nos quais vem prender-se o sujeito", ou os processos de subjetivação, segundo a leitura de Agamben. Em acréscimo, em um dos textos do livro assinado pelo coletivo anônimo Tiquun, que Agamben então apresentava (Une métaphysique critique pourraît naître comme science des dispositifs), lê-se que “Uma teoria do sujeito não é possível senão como teoria dos dispositivos”. Eis a prova conceitual de que Tiqqun promove a coincidência sem reservas das duas estratégias que em Michel Foucault encontram-se, aparentemente, cindidas: análise governamental e processos de subjetivação reúnem-se inextrincavelmente. Essa operação conceitual, irresolvida em uma zona opaca, faz coincidir teoria do sujeito, entendida como análise dos modos de subjetivação, e teoria dos dispositivos, compreendida como uma análise dos dispositivos governamentais disseminados no campo social.
Agamben afirma que nessa zona de opacidade, ou de indiferenciação - no que parece haver uma remissão explícita a um dos itens de seu Note sulla politica – os conceitos clássicos de teoria política perdem todo sentido. Seria, portanto, a partir dessa zona de indiferenciação, e unicamente a partir dela, que se deveria compreender a produção de conceitos (v.g., o bloom, a política estática, o partido imaginário, a guerra civil em seu sentido próprio) como a inserção das práticas de escritura, de pensamento e ação de Tiqqun. Não se trataria, por exemplo, continua Agamben, de uma escritura simplesmente anônima ou heterônoma, mas de um contexto em que o conceito de autor já não tem sentido. Foucault já teria mostrado (Qu'est-ce qu'un auteur?) que ao mesmo tempo em que a autoria funciona como dispositivo de subjetivação, ao atribuir um texto a um indivíduo, funciona, também, como dispositivo de imputação de responsabilidade penal. Por isso, não haveria qualquer sentido em fazer, no caso Tiquun, funcionar esse dispositivo de autor; de modo que nem Julien Coupat, nem qualquer de seus amigos, poderia, de fato, ser autor daqueles textos.
Ao final, Agamben analisa o caso Tiqqun sob o ponto de vista da legislação e dos procedimentos judiciários aplicados a Julien Coupat e seus amigos, e afirma que as leis atuais dos Estados ditos democráticos seriam mais opressivas que as leis vigentes na Alemanha ou na Itália no período fascista. Exemplarmente incompreensível seria a extensão do aparato biométrico, classicamente aplicado pelo Estado aos criminosos, a toda a população. Sob o ponto de vista da aplicação estatal dos dispositivos biométricos à população comum, “todo cidadão seria concebido como potencial criminoso ou terrorista” a partir de agora. Prova disso seria o fato de que todo homem que não se sujeita, ou denuncia, a aplicação dos aparatos biométricos pelo Estado aos cidadãos, é tratado como terrorista. Para terminar, Agamben lembra de uma história exemplar; durante a Guerra Civil espanhola, dois poetas viajavam aos Estados Unidos e, ao tentarem entrar no país, foram obstados pela polícia local que, depois de interrogatórios intermináveis, acusou-os de serem comunistas. Em resposta, um deles disse: “Eu não sou, e nunca fui, comunista; mas isso que você crê ser 'comunista', isso eu sou”. Agamben diz acreditar que hoje deveríamos responder: “"Não somos e jamais seremos terroristas; mas aquilo que vocês crêem ser ‘terrorista’, isso, nós somos”.

A partir de Bobbio: notas sobre direito, democracia e violência

02 agosto, 2010



“Em todo ordenamento o ponto de referência último de todas as normas é o poder originário, ou seja, o poder além do qual não existe outro em que se possa fundar o ordenamento jurídico” (BOBBIO, 2010, p. 204-205).


Prólogo

Tenho lido muito Bobbio, mas não por amor ao medíocre. Bobbio é sem dúvida um teórico sério, claro, dedicado às explicações; em suma, digno de respeito – embora não de adoração. Não se trata de simplesmente atirar contra o positivismo jurídico, lançar mão das críticas correntes, tão fáceis quanto obtusas, alcançar juízos de valor ou os pontos de vista morais, tão recorrentes na filosofia política anglo-saxônica contemporânea desde John Rawls (2010). Trata-se, de mostrar aquilo que Bobbio e nenhum outro positivista, ou pós-positivista, foi capaz de ler nos próprios textos positivistas.
Sobretudo, trata-se de fazer um exame mais profundo de certa ideia de que um olhar mais complacente com o positivismo jurídico permitiria escapar ao decisionismo contemporâneo – embora não seja possível ver exatamente em que decisionismo e positivismo sejam incompatíveis.
O que gostaria de demonstrar, portanto, é isto: na teoria contemporânea do direito, persiste uma solidariedade tão íntima quanto irredutível entre positivismo jurídico e decisionismo, e ela aparece precisamente no momento em que pensamos, à luz da matriz analítica, o conceito de sanção como elemento constitutivo da norma e sua relação com o controle jurídico das condutas de autoridades, especialmente no seio da evolução do direito público.


a. É fácil dizer: “Bobbio, que bom que você morreu”...

Há alguns dias escrevia no Twitter, em tom de desafio, uma frase mal-educada acompanhada de uma citação de Bobbio: “Bobbio, que bom que você morreu: ‘a evolução do direito se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador’”. Agora, temos tempo para compreender a inserção e o sentido desse excerto no interior de Teoria Geral do Direito e, especialmente, compreender de que forma, até hoje, leituras descontextualizadas como essa que propusera na limitada extensão de 140 caracteres servem a uma crítica a um só tempo falsa e fácil do positivismo. Ele deve ser criticado por razões de raiz, não de superfície.
Isso não significa, por certo, que sejamos positivistas; só que estamos cansados de criticar o positivismo em face de seu pretenso formalismo, e como pretexto para fazermos das normas jurídicas algo muito “melhor”. Antes de mostrar o problema de fundo, é tão necessário destruir a crítica fácil que se faz de Bobbio como as leituras ingênuas, que pretendem encontrar no normativismo a supremacia pura de um Estado de direito.
Essa crítica é intensamente destrutiva não porque invalide o positivismo jurídico como uma descrição possível dos sistemas jurídicos concretos ocidentais, mas porque pode desarticular o contexto de nossa ação prática de luta por direitos, na medida em que mostra uma solidariedade irredutível entre positivismo e decisionismo que a filosofia contemporânea do direito – desde Rawls, passando por Dworkin, Alexy, e seguida pela quase totalidade dos neoconstitucionalistas (ou pós-positivistas) – insiste em encobrir com um véu moral. 
Isso não implica que a crítica seja teoricamente válida, mas pragmaticamente inútil; não se pode pensar com base na separação entre teoria e política. Em verdade, teorizamos sobre a política na tentativa de reatá-las definitivamente. Nesse sentido, toda luta por direitos não deve ser descartada, mas, sim, enformada por uma espécie de suspeita não-niilista das ações práticas intra-sistêmicas. Isso não invalida tais ações; só requer que as continuemos, embora menos ingenuamente. Apontar contra as instituições, e muitas vezes até mesmo contra os direitos, condiz com a atitude prática fundada na teoria de não considerar nada sagrado ou superior; não significa que eles sejam dispensáveis, principalmente na atualidade. De toda forma, assim como postular sua total abolição é um erro, não é mais certo limitar a ação política a amealhar mais e mais direitos, especialmente sob as formas paradoxais da governamentalidade contemporânea.
Aqueles que desejarem chegar à crítica aos autores mais contemporâneos, bem como a outros, sugiro uma rápida consulta à série de posts “As atuais teorias do direito”, que publiquei em “A Navalha de Dalí” em sete capítulos. No entanto, para não ir tão longe, e a fim de evitar repetições, fiquemos, por ora, apenas com Bobbio, e nos ocupemos do contexto conceitual de produção daquele excerto.


b. ...Difícil é perceber que suas ingênuas imagens sobrevivem

A certa altura da “Teoria da Norma Jurídica” – curso que integra Teoria Geral do Direito –, ao estudar a ideia de sanção como elemento constitutivo e diferencial da norma jurídica, Bobbio lembra que

uma tendência se revelou na evolução do direito público europeu, foi aquela em direção a uma diferenciação cada vez menor entre direito privado e direito público relativamente ao problema da sanção. O ‘Estado de direito’ avançou e continua a avançar na medida em que se substitui aos poderes arbitrários aqueles juridicamente controlados, aos órgãos irresponsáveis, os órgãos juridicamente responsáveis, enfim, na medida em que o ordenamento jurídico organiza a resposta às violações provenientes não só dos cidadãos privados, mas também dos funcionários públicos. Poderíamos assinalar uma das muitas diferenças entre Estado de polícia e Estado de direito enfatizando a extensão do mecanismo da sanção partindo da base e subindo cada vez mais em direção aos vértices. O que ainda é uma confirmação da importância da sanção para estabelecer as características diferenciais do ordenamento jurídico; a evolução do ordenamento jurídico se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador. Estamos inclinados a considerar um ordenamento tanto mais ‘jurídico’ (o Estado de direito é um Estado em que o controle jurídico foi-se ampliando e, portanto, é mais ‘jurídico’ do que um Estado de polícia) quanto mais aperfeiçoada é a técnica da sanção. (BOBBIO, 2010, p. 162).

       Quando Bobbio escreve “a evolução do ordenamento jurídico se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador”, quer provar: 1) a progressiva indiferenciação entre direito público e privado no que diz respeito à forma de tratar a sanção; e sanção, aqui, não se confunde com pena, mas é um elemento estrutural da norma jurídica, especialmente para os positivistas que, de modo geral, filiam-se às teorias coativas do direito; 2) que o fato de haver normas não-sancionadas no ordenamento jurídico – especialmente aquelas localizadas no ápice de sua hierarquia -, não invalida a teoria coativista do direito nem implica que devemos rejeitar a sanção como elemento constitutivo da norma jurídica; 3) o estado de Direito consolidar-se-ia tanto quanto mais alto na hierarquia das normas se puder conduzir o controle que a sanção, como elemento estrutural da norma jurídica, exerce.
       Mais adiante, Bobbio afirma que é da natureza da estrutura democrática e estatal que o alcance da coatividade do aparato sancionador das normas jurídicas invista-se à razão inversa da hierarquia das normas, reconhecendo que o núcleo de poder do qual as normas emanam seria, em última análise, uma fonte incoercível de violência organizada e institucionalizada:

se a sanção implica a presença de um aparato coativo, a presença de tal aparato implica, em última instância, a presença de um poder de coação, que por sua vez não pode ser obrigado e que, portanto, a existência de normas não sancionadas no vértice do sistema é o efeito da inversão da relação força-direito que se verifica na passagem das normas inferiores para as superiores (Id., Ibid., p. 167).

Seu argumento de arremate em favor da natureza coativa da norma jurídica deve ser analisado a partir de sua duplicidade. De um lado, Bobbio afirma a possibilidade de pensarmos um ordenamento jurídico em que a sanção possua caráter constitutivo e diferencial, ainda que as normas superiores do ordenamento careçam precisamente desse elemento.
O que, segundo ele, diferencia a maior parte das normas jurídicas seria uma espécie de “eficácia reforçada” especialmente pela sanção. As normas superiores, normalmente carecedoras desse elemento - mas nem por isso menos jurídicas, porque integradas ao ordenamento - manteriam sua eficácia apelando à adesão espontânea, isto é, ao consenso. Bobbio admite, portanto, que um ordenamento jurídico completamente reforçado por sanções é impraticável e logicamente impossível.
De outro lado, Bobbio afirma que, embora seja impossível pensar um ordenamento jurídico composto apenas por uma norma de conduta (“Tudo é proibido”, “Tudo é permitido”, “Tudo é comandado”), o mesmo não valeria quando se trata de normas de estrutura ou de competência. Pensando em uma monarquia absolutista, teríamos como norma de estrutura “é obrigatório tudo o que o soberano comanda” (BOBBIO, 2010, p. 198-199); se assim for, as normas de conduta seriam tantas quantas fossem, em dado momento, os comandos do soberano.


c. Os cheios vãos das formas da lei: soberania, consenso, violência

O não-lido no texto de Bobbio consiste, precisamente, naquilo que ele mesmo intui, mas rechaça: as relações entre direito e força, que Bobbio deixa de lado afirmando serem demasiadamente complexas para serem tratadas no âmbito da teoria do Direito. O que interessa é pensar três categorias nas quais a teoria da norma de Bobbio resvala, sem aprofundá-las: soberania, consenso e violência. As relações entre esses três solidários elementos encontram-se nas normas superiores na hierarquia dos ordenamentos jurídicos, em estrita correlação com a “sanção”, elemento das normas jurídicas.
Ao reconhecer que as normas jurídicas hierarquicamente superiores carecem de sanção, Bobbio empreende duas grandes justificações de sua juridicidade, sem perceber que, ao fazê-lo, dá a ver o fundo soberano que habita as ordens jurídicas ditas civilizadas: 1)as normas superiores carecem de sanção na medida em que são produtos de uma força, ou de uma violência, que se confunde com aquela que institui as normas inferiores sancionadas. Normas jurídicas seriam tão menos sancionadas quanto mais próximas do núcleo originário de poder; esse argumento é reafirmado, com outras palavras, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, quando Bobbio diz ser possível pensar um ordenamento composto por apenas uma norma de competência, ou de estrutura – norma que apela expressamente à soberania; 2)  Como um democrata liberal-socialista, e entusiasta do Estado de direito, Bobbio afirma que, a despeito de as normas jurídicas – especialmente as ínferas – caracterizarem-se por uma “eficácia reforçada”, a adesão aos postulados fundamentais estruturantes de um ordenamento jurídico (as normas mais elevadas de uma ordem jurídica) teriam sua eficácia garantida pela adesão espontânea de seus destinatários; isto é, o consenso, de fundo marcadamente contratualista (hobbesiano e kantiano, no caso de Bobbio) encarrega-se de prover tais normas de eficácia dispensando a sanção como elemento reforçador.
Essa violência incoercível e soberana, que, nos estados democráticos de direito, se confunde com a eficácia garantida pela adesão espontânea dos súditos aos postulados estruturantes de certa organização político-jurídica, encontra seu limite precisamente no momento em que percebemos que a aparente contratualidade sob o fundo do consenso é ainda, e sempre, a expressão soberana daquela violência incoercível, impassível de controle e sanção, encoberta, na categoria de poder constituinte, pela mítica identidade entre governantes e governados (FURET; OZOUF, 2007, p. 483).
Bobbio reconhece que, de um lado, ordenamentos jurídicos integralmente sancionados são prática e logicamente impossíveis; Kelsen, por outro, institui a suposição da norma fundamental como ferrolho gnoseológico cuja admissão constitui condição de possibilidade de toda epistemologia jurídica. Tanto em Bobbio como em Kelsen, essas aporias são enunciadas, solucionadas pela “razão”, e rapidamente dispensadas como exteriores ao direito; no entanto, precisamente elas, como o não-lido de suas obras, testemunham que não existe auto-posição de qualquer ordenamento jurídico. Kelsen (2005) não se preocupa com isso, pois identifica os conceitos de Estado e ordenamento jurídico, e Bobbio (2010) dispensa o problema ao enunciar que o tema seria referente às complexas relações entre direito e força.
No entanto, Bobbio e Kelsen permitem ler no não-pensado de seus textos precisamente a análise daquilo que dispensam – as relações entre violência, direito e consenso. Elas testemunham que todo consenso, por mais democrático que se possa pretender, não pode deixar de ser um signo de violência soberana e incoercível, e a sanção, elemento presente em normas jurídicas inferiores, mas ausente nas superiores, nada mais é do que aquilo que Jacques Derrida (2007), como leitor de Walter Benjamin, chamou de violência conservadora do direito, ou, mais simplesmente, polícia, como quisera Agamben (1996).
Essa violência conservadora, no entanto, nada mais é do que a ressonância interior de uma violência incoercível estruturante dos ordenamentos jurídicos, e que goza de uma topologia paradoxal. A natureza dúplice do consenso soberano não permite afirmar, ao certo, se sua violência é, já, interior à ordem jurídica que ele inaugura e institui, ou exterior a ela.
No consenso democrático dos Estados de direito está postada a violência fundadora da ordem jurídica, a decisão soberana ou, como quisera Carl Schmitt (2007), a exceção irredutível até mesmo nos casos em que um tribunal julga subsumindo a situação de fato ao tipo normativo. Essa teria sido a grande contribuição de Schmitt, mas também de Agamben: afirmando a existência de um decisionismo soberano e irredutível, o primeiro destruiu as pretensões à imanência do neokantismo kelseniano – largamente recepcionado pela teoria do Direito de Norberto Bobbio; o segundo mostrou de que maneira exceção e norma são solidárias, mesmo quando se fala de consenso democrático – e o alvo de Agamben é Jürgen Habermas –, e se encontram articuladas segundo uma indiferenciação cuja tensão é constitutiva de todo ordenamento jurídico fundado, par excellence, em uma violência originária, e conservado pela polícia soberana.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DERRIDA, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FURET, François; OZOUF, Mona. Dictionnaire critique de la révolution française. Idées. Paris : Flammarion, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.


* Texto publicado originalmente em 01.08.2010 na Coluna "Suscitar acontecimentos", do  site O Pensador Selvagem