O amor como introdução à filosofia (parte 3 de 3)

12 dezembro, 2011




"Amor não falta"


         Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.

         Em um texto sobre O amigo, Giorgio Agamben pergunta-se sobre o significado do sintagma “eu te amo”. O fato de que “eu te amo” não tenha recebido até hoje nenhuma definição satisfatória constituiria o indício de que a afirmação tem caráter performativo; isto é, seu significado coincidiria com o ato de seu proferimento.

         Seguindo a definição espionsana de desejo como causa imanente, Nietzsche já afirmava um desejo imanente como princípio do amor no aforismo 175 de Além do Bem e do Mal: “Por fim, amamos o próprio desejo, e não o desejado”; princípio semelhante se repetiria, mais tarde, em Vontade de Potência, em que Nietzsche afirmava “Eu não desejo; algo em mim deseja”. Não há, pois, sujeito de desejo na medida em que é o desejo o que antecede e pode constituir o sujeito. A boca, demasiadamente certa de si, que pronuncia “eu” balbucia um outro como o desejo que em mim deseja.

         Se Agamben estivera certo, e “eu te amo” não admite significação satisfatória, afirmaríamos que há amores, ainda que não-conceituais. Se assim for, o amor e o desejo já não admitem inclusão no plano dos conceitos, mas no plano do pré-conceitual, do pré-filosófico, na dimensão da experiência pura, do campo de imanência (que, por definição, é aconceitual).

         Se falamos de um amor que já não pode ser definido, e sequer significa, que não existe em função de um sujeito, mas que pode subjetivar, criar suas máscaras e mudar os rostos e impressionar os corpos, a pergunta que deve ser feita altera-se, também: não se trata mais de perguntar “o que é o amor?”, mas, sim, “como o amor funciona?”; e, se o fio condutor de nosso problema é mostrar em que medida o tema do amor pode servir como uma introdução à filosofia, talvez fosse o caso de perguntar-nos “em que consiste tomar o amor como experiência contra o saber?”, experiência de erotismo sem egotismo: eu dissolvido em proveito de um si singular, impessoal.

Assim como Descartes e Kant erigiram o sujeito como o ponto de gravidade de toda teoria do conhecimento possível, ao dissolver as identidades demasiadamente personalistas, o amor abriria uma outra chance de pensar em comum: quando os sujeitos são dissolvidos, é o que Deleuze chamava de Campo Transcendental – a dimensão comum e imanente – que resta, e ela altera não apenas os rostos e corpos, mas também os afectos que vem inscrever-se nos corpos tornados a mais própria dimensão da experiência sensível.

Por essa abertura, podemos ensaiar uma primeira relação entre as escrituras do amor e da filosofia. A escritura do amor em comum é a escritura eventual: biográfica, franzida nos traços da vida, entremeadas nos acontecimentos. A biografia amorosa escreve-se, assim como a escritura filosófica, na ponta de nossa mais extrema ignorância. Os relatos dos apaixonados e dos filósofos não raro são os mesmos: “eu não sabia o que estava fazendo...”, “... simplesmente aconteceu...”, “eu não sabia que era isso...”; no amor, como na filosofia, somos sempre os últimos a saber – quando o eu se apropria de um sentimento qualquer, de uma intuição que se esboça sob os olhos perdidos da nossa desatenção, já nos encontramos apaixonados, já se instaurou o conceito. É nessa ponta de extrema ignorância – inconsciente, como o próprio princípio do desejo – que não será defeso criar conceitos e amar o amor como duplo de um único gesto vital.


* * *


Gostaria, agora, de percorrer ao longo de dois ensaios para responder à questão “como o amor funciona?”.
Deleuze, em Proust e os Signos, afirmava que apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que emite; tornar-se sensível a esses signos... se a amizade nasce da observação e da conversa – isto é, da comunicação –, o amor surgiria de uma espécie de interpretação silenciosa, marcada pelo desenvolvimento dos signos que recebemos da pessoa amada; o que Deleuze quer dizer é que não é possível amar sem instaurar um novo sentido no mundo, sem se sensibilizar pelos signos de outrem que, povoando um campo heterogêneo,apela a um outro mundo possível.
O que é o amado? Há, em Deleuze, ao menos três respostas a esta questão: o amado pe um emissor de signos, e apenas amamos ao preço de deixar nossos corpos serem impressionados por estes signos; o amado é um outro mundo possível que se encontra envolvido em cada signo emitido; e, finalmente, o amado é uma senha: que exige decifração, paciência, entrega. O signo é, para Deleuze, o afecto, a violência, “aquilo que dá a pensar”, que engendra o pensar no pensamento, que tira o intelecto de seu inatismo e de seu natural estupor.
         Uma vez que ao amar desembocaríamos em mundos que se formaram em nossa ausência, que nos excluem essencialmente, as palavras o amado soariam sempre como mentiras. O amado nos envia seus signos desde outros mundos possíveis, que não podemos compreender inteiramente; por isso o ciúme, ao ir mais além na decifração dos signos, seria mais profundo que o amor. Enquanto o ciúme busca, suspeitosamente, a mentira no signo amável como índice de um outro mundo possível, o amor funciona como a comunidade entre duas singularidades irredutíveis, a diferença mais estrangeiras, o que Deleuze chamara “a realidade feminina original, o mundo de Gomorra”...

        

         Giorgio Agamben, em A ideia da Prosa, escreve sobre uma Ideia do amor:

“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.” 
           

O que é um autor, um filósofo, uma obra? Um mundo possível, um território desconhecido, um ser em cuja estranha intimidade podemos viver; o ser que mantemos distante, inaparente, a fim de que seu nome possa contê-lo inteiro; um amante emissor de signos aos quais podemos ter nos tornado sensíveis, a partir dos quais se tornou possível instaurar um novo sentido no mundo, mas apenas ao atingir seu mais fino grão: sua diferença mais irredutível.


O amor como introdução à filosofia (parte 2 de 3)

09 dezembro, 2011



Australian Scott Jones kisses his Canadian girlfriend Alex Thomas after she was knocked to the ground by a police officer's riot shield in Vancouver, British Columbia. Canadians rioted after the Vancouver Canucks lost the Stanley Cup to the Boston Bruins. (Getty Images / Rich Lam)


A história da má-compreensão do amor é a história da má-compreensão da filosofia


Não podemos culpar os filósofos que nos ensinaram toda a macia mansidão da etimologia da palavra filosofia - ingenuamente, "philos" + "sophos" indicaria o "ser amigo" do saber. Eles não haviam sido tocados pelo mistério do amor, eles nunca haviam penetrado absolutamente nada com o próprio ser.

        Se tudo passa por aí, como começar a falar de filosofia sem falar de amor, de conjunção, dos encontros entre os corpos? Em Atenas, se há um modelo para a filosofia, não se trata pura e simplesmente do modelo do amigo. É em Foucault, e na história da sexualidade, que a amizade surge como a possibilidade da estética da existência, mas o que Foucault descobre em O Uso dos Prazeres é que o amigo é apenas a ponta mais extrema que a relação antes de tudo amorosa, inquieta e concupiscente, deve ter como destino. O amigo só se constitui, na polis grega, ao preço de ter sido, antes de tudo, o amante. A amizade é a relação social estável e conveniente à política e ao espaço público; o amor e os prazeres, o que perturba e faz variar esses tecidos sociais calmos ao mesmo tempo em que constitui a condição de possibilidade para os reinstaurar sempre e a cada vez.

Se há um procedimento em geral da filosofia é o do sujeito, demasiadamente certo de si, dissolvendo-se para entrar em conjunção com o outro (o filósofo, a obra, o conceito, o campo de imanência, as intensidades, as afecções). É isso o que acontece quando nos deixamos tocar pela filosofia: tudo vira Eros, queremos fazer amor com o mundo, tornamo-nos sensíveis a seus signos exteriores. A filosofia não é, nem nunca foi, um território vazio, frígido ou inerte; está mais para um contato sem dúvida incômodo, difícil, em que é aquilo que você chama de “eu” que é colocado, de repente, e sem querer, em jogo. Filosofia é uma espécie de delírio, como o amor; quem nunca alucinou as pernas de uma mulher nas pernas de todas as outras mulheres; os olhos da mulher amada nos olhos de todas as outras, os lábios da amada na boca das outras? É por isso que o amante olha para as outras: para alucinar a amada no campo mais heterogêneo; para descobrir, nele, a diferença que torna absolutamente singular a multiplicidade da mulher amada.

Assim como um poeta alucina a gramática, um filósofo alucina os conceitos: conserta, enxerta, engendra novos, repete-os fazendo-os engendrar qualquer coisa de diferente. A filosofia é uma alucinação dissonante, um compromisso com o que há de obscuro e ao mesmo tempo potente na existência e no comum.


O Banquete platônico teria iniciado toda a história dos mal-entendidos sobre o amor e, de consequência – se é imposível filosofar sem amor – sobre a própria filosofia; nele, Eros é definido por Aristófanes como completude (a raiz do imaginário coletivo sobre o amor romântico), mas só atinge verdadeiramente seu ponto máximo quando o Sócrates - velhaco, mas sedutor -, tentará demonstrar o seu engano. No entanto, Sócrates não fala em nome próprio. Tendo aprendido a genealogia do amor com uma mulher, a voz socrática fala pela boca da sacerdotisa Diotima de Mantinea. Em seu discurso, no qual tomará lugar por excelência o feminino, Eros será definido genealogicamente como filho do recurso e da pobreza. Sua mais simples e célebre elaboração encontrará na suposição de que, para amar, é necessário que algo essencialmente nos falte: “O que deseja, deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente”, afirma Sócrates. Só se pode amar aquilo que não se tem; sendo Eros filho do recurso e da pobreza, o objeto do amor será, a um só tempo, sempre ausente e sempre solicitado.

Cronologicamente mais próxima de nós, a psicanálise lacaniana não definirá o desejo por meio de outro termo que a falta, o objeto menor, a, fruto, como a Lei, da castração. Aquilo que falta, aquilo a que o Simbólico não pode atingir de todo, será, para Lacan, o Real. Mas, se for assim – se o amor for falta -, como fazer a experiência dessa ausência? Como experimentar o vazio naquilo que ele deveria ter de desejo?


-------> (Continua).

O amor como introdução à filosofia

08 dezembro, 2011


Amour et psyche, de Picot.


         Durante uma madrugada, em uma crise de insônia como jamais tive, repentinamente assaltou-me o tema: Luis Alberto Warat teria estado certo todo o tempo quando dizia que o amor poderia constituir a mais sublime entrada para conversar sobre filosofia. Não há filosofia sem criação e sem afeto, especialmente se o conceito é – sobretudo - singularidade. E aos poucos surgia emocionalmente esse prurido e esse desejo de falar sobre o amor, de relacionar o amor à filosofia, de falar do meu amor pela filosofia, talvez, mas, sobretudo, de ensinar esse amor tão singular, tão difícil, tão árido, destemperado e louco, a meus alunos.

Deleuze dissera certa vez que a única relação que um professor pode ter com seus alunos é reconciliá-los com sua própria solidão, e estar sozinho, eis o mais difícil do amor; estar sozinho mesmo acompanhado, reconciliar-se consigo, instaurar uma relação consigo que dissolva o ego, que faça do eu uma singularidade impessoal. Por certo, a filosofia está cheia desses nomes próprios, como quem diz “Descartes”, ou “Kant”, ou “Hegel” ou “Nietzsche”, e se imagina falando de um eu; engana-se; o filósofo não é um eu, o filósofo é um outro, é um animal à espreita, é um criador, é um falsário, um ilusionista, um canalha a quem amar.

Na filosofia, como no amor, está instaurado de antemão o problema da alteridade: como conectar-se com os outros? Como entrar em conjunção com os outros? Não é essa a pergunta que instaura a filosofia, mas também a demanda amorosa? A questão que oferecia a Bergson, por exemplo, o seu método metafísico por excelência: metafísica é questão de intuição, de entrar na coisa, de penetrar a intimidade estranha de tudo o que constitui o absolutamente outro – uma forma de transformar, como quisera Oswald de Andrade, tabu em totem, recusar o estado de graça e retornar ao estado de inocência: a comunhão da diferença, a comunhão de dois irredutíveis; finalmente, quando o uno é visto como um dos modos do em-dois

Constituição, Estado de Exceção e Anistia

02 outubro, 2011



O presente evento, em sua segunda edição, se presta a debater temas atuais e polêmicos do Direito Constitucional contemporâneo como:

1- Constituição e Estado de Exceção: 44 anos da Constituição de 1967 e a questão da Anistia
( Segunda-feira, 03.10.2011, Auditorio 239, das 8h30 as 12h) ;
2- A Questão do Ativismo Judicial
( Terca-feira, 04.10.2011, Auditorio 239, das 19h30m as 22h30m) ;
3 - O Estado Laico
( Quarta-feira, 05.10.2011, Auditorio 134-C das 8h30m as 12h) ;
4 - A Ordem Econômica da Constituição e a Construção do Estado Social
( Quinta-feira, 06.10.2011, Auditorio 117-A, das 19h30m as 22h30m) ;
5 -Soberania Popular e Democracia Participativa
( Sexta-feira, 07.10.2011, Auditorio 239, das 8h30m aas12h);

Estarão presentes acadêmicos do porte de Celso Antônio Antônio Bandeira de Mello, Murilo Duarte Costa Corrêa, Nelson Nery jr, Luís David Araújo, Silvio Luís Ferreira da Rocha, Leda Paulani, Roberto Caldas, Willis Santiago Guerra, Pedro Estavam Serrano e tantos outros.

Contamos com a sua presença!

Grupo Disparada



Fonte: http://www.facebook.com/event.php?eid=154008644694039

Ideia do amor, por Giorgio Agamben

17 julho, 2011




"Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada". (Agamben, Giorgio. Idea della prosa, Feltrineli, 1985).



Deleuze, o amor: marcas afetivas

02 julho, 2011



« O segundo círculo é o do amor. O encontro Charlus-Jupien leva o leitor a assistir à mais prodigiosa troca de signos. Apaixo­nar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É torna-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas es­tão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desco­nhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo me distinguia ela?"
Há, portanto, uma contradição no amor. Não podemos in­terpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mun­dos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do ama­do, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedi­cados, exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de preferência; mas, como esses sig­nos são os mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada preferência que nós usufruímos deli­neia a imagem do mundo possível onde outros seriam ou são pre­feridos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe diri­gira naquela mesma noite – e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela, cada carícia inven­tada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar, cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam enriquecer de novos instrumentos o seu suplício." A contradi­ção do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independên­cia, com relação ao nosso amor.
         A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os "expli­quemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular do amado, mas em razão de uma contradi­ção mais profunda, que provém da natureza do amor e da situação geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentiroros que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a ori­gem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofun­damento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérpre­te de mentiras. O seu destino está contido no lema "Amar sem ser amado".
Que esconde a mentira dos signos amorosos? Todos os sig­nos mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto: o mundo de Gomorra, que também não depende desta ou daquela mulher (embora deter­minada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a possibilidade feminina por excelência, como um a priori que o ciúme descobre. O mundo expresso pela mulher amada é sem­pre um mundo que nos exclui, mesmo quando ela nos dá mos­tras de preferência. Mas, de todos os mundos, qual o mais exclusivo? "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da realidade que nos submer­ge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas suposições, era por elas pressentido (...) o rival não era semelhante a mim, suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, proporcionar a Albertina os mesmos prazeres, nem mesmo con­cebê-los de modo exato." Nós interpretamos todos os signos da mulher amada, mas no final dessa dolorosa decifração nos de­paramos com o signo de Gomorra como a expressão mais pro­funda de uma realidade feminina original. »


(Sem grifos no original. Um excerto de: DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2. ed. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 07-09).