“Dénies L’horreur, Rosenfield!”

23 março, 2012


“É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam”.
Michel Foucault


           Fazer do nome um monstro. Quando Dênis Lehher Rosenfield deixa ver, em toda a agramaticalidade substantiva da superfície de seu nome pessoal, sua responsabilidade: “Dénies L’horreur, Rosenfield”.

Brincamos, apenas: em francês, Dênis Lehher Rosenfield é quase homófono de “Dénies L’Horreur, Rosenfield” (“negas o horror, Rosenfield”) e quase homógrafa de “Dénies L’Erreur, Rosenfield” (“negas o erro, Rosenfield”). E pensar que não é a acusação que temem os militares responsáveis por graves violações de Direitos Humanos – afinal, disso são acusados desde 1964 –, mas o vocativo; a evocação do nome, sob circunstâncias institucionais especiais, que arriscaria fazer monstro até dos nomes mais insuspeitos.

O gracejo parece ainda mais gracioso porque Rosenfield fez toda a sua formação entre as décadas de 80 e 90 en France, de modo que arrisca ter ouvido uma ou muitas vezes seu nome do meio – justamente o materno, que não evoca, reconhece ou interioriza a Lei – soando como “o horror” ou “o erro”, seguindo o prenome que, este, deve ter sempre soado como Dénies: “Tu negas”, e o nome-do-Pai, significativamente ouvido na função de vocativo: “Tu Dénies, Rosenfield”.

Seu nome talvez antecipasse a ingenuidade parasitária de afirmar que a Lei de Anistia brasileira representa um marco sem par entre os projetos de pacificação e reconciliação no cenário pós-ditatorial latino-americano, a fim de minar o princípio do argumento que faz do Brasil o Estado menos avançado da América Latina em matéria de justiça de transição.[1] Como explicar, então, que a condenação brasileira no caso Gomes Lund contra a República Federativa do Brasil junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos comprove abertamente a inépcia das instituições estatais em fazerem o mínimo: reconhecerem sua responsabilidade?

        À sua imagem, eis o que Rosenfield fizera em um texto publicado em 22.III.2012, na Folha de São Paulo: negar, renegar, denegar, abnegar. “O risco de uma Comissão do Acerto de Contas”, republicada pelo sítio do Instituto Millenium, traz à tona alguns argumentos antigos e outros novos sobre a defesa da Lei de Anistia brasileira. Ocupo-me em por em questão os principais, a partir de agora:

* * *

        O argumento central de Rosenfield, ao redor do qual podem ser articulados todos os demais pontos, é este: “Uma comissão dirigida contra os militares seria um evidente contrassenso, pois, então, o seu nome deveria ser Comissão de um Acerto de Contas”.

O argumento produz a impressão de uma lógica privatista, a do acerto de contas – lógica que, aliás, marca o pensamento do filósofo Dênis Rosenfield – a uma matéria pública. Lógica que, mais que não compreender a dimensão pública do espaço de discussão sobre a memória e a verdade em um contexto precisamente qualificado como pós-ditatorial por Idelber Avelar em Alegorias da Derrota, busca fazer da democracia brasileira um a priori histórico do presente, enxergando, nele, paradoxalmente, seu télos, seu inultrapassável ponto de chegada.

Ao mesmo tempo, a insistência em imprimir à Comissão da Verdade uma lógica privatista por meio da qual Rosenfield quer nos fazer confundir a necessidade internacionalmente reconhecida de os governos pós-autoritários assumirem sua responsabilidade diante de graves violações de Direitos Humanos com a impolida e odiosa qualidade apolítica de um mero “acerto de contas”, uma “cobrança feita no portão de casa”, despida de qualquer formalidade ou rigidez institucional, assume estrategicamente a tarefa de obliterar o campo de discussão pública que uma Comissão da Verdade tem por ofício reabrir aos cidadãos.

Rosenfield não quer dar a ver que as perguntas sobre o passado só nos vingam da atual impossibilidade de interpretar o passado – porque ter o poder de interpretar o passado significa arriscar apoderarmo-nos do futuro; por isso, elogia a restrição às fontes que podem sugerir as reinterpretações, restituições e reapropriações dos discursos produzidos no período ditatorial. Isso que Rosenfield chama vingança, acerto de contas, revanche, assinala que o comum pode ser, uma vez mais, posto em jogo.

E o comum está em jogo, mas vertido em discursos dos quais aqueles que sempre tiveram o direito de consentir a palavra, fazer falar e mandar calar (usando os corpos individuais como superfície de inscrição de suas injunções sobre os regimes dos signos, até o limite da morte individual) continuam a querer ser os únicos e legítimos proprietários, gestores dos discursos sobre o período histórico que, julgam, “foi o deles”.

Os militares já não podem censurar os espaços institucionais e sociais de produção de sentido. Tampouco cientistas, pesquisadores, artistas, poetas, políticos e literatos, para além do saber de Estado; essencial, mas nunca monolítico. Só há coletivos micropolíticos que operam nas roturas entre Estado e sociedade.

De nada vale afirmar axiomaticamente que “Nessa história não há mocinhos nem bandidos”. De um ponto de vista interno ao argumento, porque a resistência de esquerda é qualificada pelo próprio Rosenfield como terrorista; donde se pergunta: “se eles são os terroristas da esquerda, e nessa história não há mocinhos ou bandidos, sob que razão os militares esconderiam então o seu terrorismo de Estado?”. De um ponto de vista externo, porque, como não cessou de dizer Vladimir Safatle, “nem todas as formas de violência se equivalem”. A violência de que se utilizam aqueles que se armam para resistir à violência estruturada de um Estado ilegítimo e opressor não possuirá, nunca, a mesma qualidade democrática da violência de que este Estado, ilegítimo e opressor, utiliza-se para reprimi-los. O argumento de Safatle baseia-se no direito à resistência de John Locke, filósofo político liberal que talvez seja familiar a Rosenfield.

O mesmo Rosenfield que afirma que “A constituição da Comissão da Verdade deveria ser pautada pela imparcialidade e não por qualquer viés ideológico, algo que só deformaria o seu próprio trabalho.”

A finalidade da Comissão da Verdade não pode nem deve ser “imparcial” (o que significa desideologizada, no vocabulário de Rosenfield) porque desempenha uma função institucional: apurar as responsabilidades do Estado brasileiro em graves violações de Direitos Humanos. Essa é uma função internacional e historicamente reconhecida a toda Comissão da Verdade, e obedece à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como lembra Pádua Fernandes. A não ser sob o ponto de vista normativo, da perspectiva dos arranjos de forças não há imparcialidade possível para investigar o passado, pois o passado não se produziu fora dos campos cerrados das condições sociais, econômicas, governamentais e também ideológicas que permitiram sua singular emergência. A desejada imparcialidade e a defesa dos militares está garantida pelo devido processo penal - o mesmo que os Tribunais Militares não respeitaram para condenar dissidentes políticos.

O Estado não produz história, ainda que possa produzir uma certa narrativa histórica, em que, sobretudo, ele se torna o principal implicado, juntamente com seus agentes. Documentos produzidos unilateralmente pela ditadura só mostram como o Estado se aparelhava; prova a singularidade da atuação repressiva do Estado e de seus agentes sobre os resistentes políticos – cuja resistência é, ainda hoje, desqualificada como terrorista, sem se aperceber de que o argumento que torna a resistência civil ilegítima, torna simetricamente ilegítimo o assalto dos militares ao poder constituído em 1º de Abril de 1964.

No entanto, há um instante em que a negação se converte em positividade salvífica: trata-se de uma disputa pelo lugar do messias, que os militares esforçam-se por ocupar, encarregando-se da teleologia da história, a qual não existe e cuja autoria não poderia ser-lhes atribuída, pois não pode ser atribuída a ninguém em particular (tanto menos ao Estado). “Ninguém é responsável por uma emergência, ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se produz no interstício”, afirmaria o Foucault de Nietzsche, a genealogia e a história.

As emergências são impessoais e designam a abertura de um espaço de confronto. Isso também significa que militares, sociedade organizada, Estado ou instituições nada podem fazer para conter uma emergência. A estipulação das condições de uma emergência qualquer constitui o campo de imanência sobre o qual Estado e instituições são erigidos e, por essa mesma razão, tais condições não podem ser agarradas, manipuladas, sem destruir seu próprio solo.

         A mitologia da ampla reconciliação nacional, construída a partir da Lei de Anistia, por seus presumidos efeitos de pacificação e concórdia,[2] creditam-se da falácia de que os militares e a direita brasileira continuam imparciais e desqualificam politicamente a memória que está em jogo.

    Colocar a memória em jogo, fazer sua genealogia, perscrutar eticamente suas visibilidades – isso que também faz parte das escrituras da História, e que não cabe unicamente ao Estado – serve precisamente para fazer vacilarem as verdades constituídas; afinal, a verdade sobre a reconciliação - da qual os militares e a direita se autoproclamam os instituidores - bem pode ser um erro que teve, até agora, “a seu favor o fato de não poder ser refutada”, como quisera Foucault sobre a genealogia da verdade em geral.

Não houve, até hoje, erro mais irrefutável nem “verdade” mais parcial e ideológica que o recalque civil-militar imposto pela generalização do discurso de que a ditadura no Brasil é página virada. Não há nada mais político, interessado e privatista que o recalque civil-militar; e não há nada mais ideológico que negar o erro e o horror, Dênis.

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[1] É Rosenfield quem escreve que “O Brasil apresenta, dentre os países da América Latina, um modelo único de transição de um regime autoritário para um democrático. Seu norte foi o da conciliação nacional, seu instrumento foi a Lei da Anistia, válida para todos os lados”. Não se apercebe, porém, de que a Lei de Anistia, de 1979, aprovada “bionicamente”, excepciona “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”.
[2] Escreve Rosenfield: “[...] pretender revogar a Lei da Anistia é um ato que tem como objetivo substituir a concórdia estabelecida pela discórdia”, e também: * “[...] os militares têm razão em ter reagido, pois estão defendendo uma lei de pacificação nacional”. E, o que se assoma como ainda mais interessante é que Rosenfield afirma como único ponto a favor do governo Dilma que “[...] o Brasil chega à posição de sexta economia do mundo, graças à sua estabilidade institucional e ao seu ambiente político”, dando a ver a filiação (a meu ver nem um pouco oculta, sobre o qual Eduardo Viveiros de Castro há muito alerta) do caráter desenvolvimentista dos governos Lula-Dilma às estruturas de desenvolvimentismo da ditadura militar.


* Este texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #desarquivandoBR 






Tradução: "O gozo, a morte", de Georges Bataille

15 março, 2012


{ O gozo, a morte } [1]
Georges Bataille




         Se me perguntassem “quem eu sou”, eu responderia: eu olhei o cristianismo para além dos efeitos de ordem política, e vi em sua transparência; através dele, a humanidade primeira apreende o horror diante da morte, ao qual os animais não acederam, excluindo os gritos e os gestos maravilhosos, nos quais se exprime uma conciliação no estremecimento. A punição e a recompensa fizeram a opacidade do cristianismo. Mas na transparência, na condição de estremecer, eu reencontrei o desejo, a despeito desse estremecimento, de afrontar a impossibilidade estremecendo até o fim. O primeiro desejo...

         Na reprodução, na violência das convulsões das quais a reprodução é a solução, a vida não é apenas a cúmplice da morte: é a vontade única e dupla da reprodução e da morte, da morte e da dor. A vida não se deseja senão no dilaceramento; como as águas das torrentes, os gritos de horror perdidos fundem-se em um rio de gozo.

O gozo e a morte estão misturados no ilimitado da violência.


[1] Traduzido de BATAILLE, Georges. Le souverain. Paris: Fata Morgana, 2010, p. 78-79.

Tradução: "Ideia de justiça", de Giorgio Agamben

02 março, 2012


À esquerda, "O vazio"; abaixo, "Recordação", pinturas de Gao Xingjian



Ideia da justiça[1]
Giorgio Agamben


O que quer o Esquecido? Não memória ou conhecimento, mas justiça. Todavia, justiça – à qual ele se fia – por ser justiça não pode fazê-lo aceder ao nome e à consciência; seu rescriptum implacável se exerce só, como punição, sobre os esquecimentos e as carnificinas – sobre o Esquecido, ele não diz palavra (a justiça não é vingança, ela nada tem a reivindicar). Ela não poderia, aliás, fazê-lo sem trair aquilo que se abandona entre suas mãos, não para estar indene à memória e à língua, mas para permanecer imemorial e sem nome. A justiça é, pois, a tradição do Esquecido. Mais essencial que a transmissão da memória é, para o homem, a transmissão do esquecimento, na qual a acumulação anônima cresce sobre seu dorso dia após dia, sem que se possa consumi-la ou abrigá-la. Para todo homem, e com mais razão para toda sociedade, essa pilha é de tal forma enorme que os arquivos mais bem compostos dela não poderiam nada conservar (e toda tentativa de enxergar a história como um tribunal é, da mesma forma, falaciosa).

         Encontra-se lá, contudo, o mais seguro legado de cada homem. Ao fazer escapar à língua dos signos ou da memória, o Esquecido faz nascer para o homem – e para ele, apenas – a justiça. Não como um discurso que se poderia divulgar ou esconder, mas como uma voz; não como um testamento autógrafo, mas como um gesto anunciador ou uma vocação. Nesse sentido, a mais antiga tradição humana não é Lógos, mas Diké (ou melhor, os dois são indissociáveis desde a origem). A linguagem, como memória histórica consciente de si mesma, não é nada senão nosso desespero, surgido imprevisto face às dificuldades da tradição.Ao acreditar transmitir uma língua, os homens doam-se uma voz reciprocamente; e ao falar, eles se livram da justiça sem remissão possível.


[1] Traduzido de : AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. Paris : Christian Bourgois Éditeur, 1998, p. 62-63.

Só há memória subterrânea

14 dezembro, 2011




O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso dos discursos oficiais(Michael Pollak)



            Em um pequeno texto, do ano de 1925, Freud lembrava que a negação constitui “uma forma de tomar conhecimento do que foi reprimido” (Freud, 2011, p. 277). Embora a negação não seja uma aceitação do reprimido, negar implicaria “um levantamento da repressão”, capaz de dar testemunho de uma divisão mais profunda entre as faculdades intelectuais e a dimensão afectiva.
            Entre os sons moucos brandidos pelos discursos oficiais, as decisões dos tribunais superiores, o fórceps para fazer nascerem instituições encarregadas do impossível - a exemplo da Comissão Nacional da Verdade (Lei Federal n. 12.528/2011), cuja tarefa política é a de reproduzir simbolicamente o silêncio – o Estado Brasileiro e o governo federal não tem cessado de reinstaurar o negacionismo como postura intelectual e política fundamental de nosso tempo.
         O primeiro dos sintomas desse negacionismo encontra-se na recusa pelo Supremo Tribunal Federal em declarar a não-recepção da Lei de Anistia pela Constituição da República de 1988. Quase que paralelamente ao ajuizamento da ADPF 153 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil perante o STF, em 26 de março de 2009 o Caso Gomes Lund e Outros contra a República Federativa do Brasil era recebido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, situada na cidade de San José, na Costa Rica, tendo por objeto responsabilizar a União por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas (membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região) como resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia.
          A derrisória defesa brasileira, que chegou a alegar em seus últimos estertores, a perda de objeto da demanda - dado que o STF, em abril de 2010, julgou constitucional a Lei de Anistia -, acabou derrotada pela sentença de 24 de novembro de 2010 proferida no âmbito de uma Corte Internacional de Direitos Humanos.
Desnecessário lembrar que os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que redundaram na decisão da ADPF 153, se não ignoraram completamente as disposições de Direitos Humanos aplicáveis ao caso, não atenderam sob nenhum aspecto à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que considera permanentes, e logo insujeitos à prescrição, os crimes de lesa-humanidade.
            A Corte interamericana de Direitos Humanos concluiu que as disposições da Lei de Anistia brasileira não podem obstar a investigação e a punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, especialmente em se tratando de lei de autoanistia, preceito incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos segundo a jurisprudência da Corte Internacional. Reconheceu, ademais, o caráter permanente do desaparecimento forçado, a imprescritibilidade dos crimes e a violação do dever brasileiro de tipificar o desaparecimento forçado de pessoas. Ainda, consubstanciou-se a violação ao direito à verdade e da integridade pessoal (especialmente psicológica) dos familiares das vítimas.
            Diante disso, a CIDH fixou uma série de reparações, determinando ao Estado brasileiro a investigação, o processamento e a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos na época da ditadura, o esclarecimento público do paradeiro das vítimas, o atendimento psicológico a ser dispensado aos familiares das vítimas que o desejarem pela via do sistema de saúde pública.
Determinou, ainda, que se desse ampla publicidade da condenação, com ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, prevendo como garantias de não-repetição a criação de um programa permanente e obrigatório sobre direitos humanos em todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, tipificação penal do delito de desaparecimento forçado, acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado sobre os fatos, instituição de Comissão da Verdade etc. Finalmente, oportunizou-se às vítimas o acesso a indenizações por danos materiais e imateriais.

* * *

            Muito além de expor a fratura entre as interpretações nacional e internacionalista dos Direitos Humanos, o caso Gomes Lund expõe o negacionacionismo de fundo que há décadas orienta as políticas institucionais brasileiras empenhadas em acertar contas com o passado ajustando-o a um discurso histórico oficial. É Freud quem, há pouco, auxiliava-nos a compreender que a postura negacionista implica o reconhecimento do negado ao mesmo tempo em que o reprime, e que a negação testemunha uma ruptura entre dimensões afectivas e intelectuais.
       A divisão encontrada por Freud entre afecto e intelecto na negação, com toda a sua ambiguidade, poderia remeter à clivagem entre discurso oficial e memória subterrânea que o sociólogo e germanista francês Michael Pollak (1989) apresentava em Memória, esquecimento, silêncio. Por oposição à memória institucional, as memórias subterrâneas, dos grupos marginais, dos excluídos, são as memórias do sofrimento e da dominação.
        O campo das disputas sobre a memória e seus signos esteve sempre aberto: memórias segmentarizadas, de Estado, enunciados oficiais permeados por excessos do perdão e negligências pardas, encontram-se com linhas de ruptura que são subrepticiamente desenhadas, cingidas, esboçadas pelas memórias subterrâneas que se infiltram pelos espaços não-oficiais e podem quebrar suas linhas molares.
            Se, como quiseram Nietzsche e Clastres, a memória, mas também a lei, é inscrita no corpo a partir de um sistema de afectos e de crueldade, são as memórias subterrâneas, não raro resistentes na morada de seu silêncio, que podem emergir e travar combates no campo da formação simbólica do político. Combates, guerras de guerrilhas, não guerras de abolição: não se trata de suprimir os discursos oficiais, mas de penetrá-los por baixo, pelas costas, traí-los, fazerem-se cravar o ferrão nas próprias costas, pronunciar no interior dos espaços institucionais – e também para muito além deles – as linhas de ruptura de que os saberes de Estado, as investigações documentais e o poder jamais serão capazes.
       O que Pollak, como Freud, compreenderam muito bem é que a negação está longe de ser um dispositivo puro de reconhecimento ou de repressão: a negação é um misto; negar-se a cumprir a decisão da Corte Interamericana, como vem fazendo o Estado Brasileiro já há um ano, nem reprime o conteúdo negado – pois algo sombrio dele se desprende e parece persistir como uma memória silenciosa, roída por dentro – nem o dá integralmente à vista.
          A decisão do caso Gomes Lund constitui um dos primeiros espaços institucionais povoados pelas memórias subterrâneas. A negação de seu cumprimento constitui, mais que uma atitude hipócrita, o gesto do reprimido daquele que confessa: o momento enrubescente em que a repetição consciente do “Não é isso” torna-se, sem que percebamos, afirmação: “Não, é isso”.
        A negação, no entanto, não contém nunca a condição para sua própria superação dialética. O que sua impenetrabilidade inaparente e atual oferece, com a rotura entre o intelectual e o afectivo, é o próprio limiar entre o silêncio e o simbólico: pequenas rahaduras no interior das continuidades supostamente monolíticas, linhas de fuga ou de ruptura que se insinuam por entre as linhas de segmentariedade dos aparelhos de Estado. Esse limiar constitui a positividade possível do passado que Deleuze afirmava ser o fundamento do próprio tempo: só há memória subterrânea.



* Para outros textos sobre o tema, visite: http://murilocorrea.blogspot.com/search/label/mem%C3%B3ria

Ato pelo cumprimento da sentença do caso Araguaia

13 dezembro, 2011



Amanhã, o Navalha de Dalí participará do ato pelo cumprimento integral da sentença do caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Junto a Pádua Fernandes, de O Palco e o Mundo, e Niara de Oliveira, do Pimenta com Limão, colaboraremos com um pequeno texto para a Quarta blogagem coletiva #DesarquivandoBR, pela pela abertura dos arquivos da ditadura, pela revisão da Lei da Anistia e pela punição aos torturadores, convocada por Niara.

Paralelamente, o tuitaço poderá ser acompanhado pela consulta às hashtags #cumprase e #desarquivandoBR. Espero que eventuais floods de minha parte estejam, de antemão, perdoados.